No princípio era o verbo, mas o que era mesmo esse verbo? Signo, carne, luz? Dependendo da resposta que cada um venha a dar, tem-se um místico, um filósofo, um escritor. Ou mesmo um indivíduo pragmático, para quem a palavra é mera subsidiária da ação. Nascemos entre signos, e o verbo nos engendra.
Nosso destino, então, é circular entre palavras. A sensibilidade a elas varia de pessoa para pessoa, mas o homem só se conhece e se pensa por meio da representação verbal. Há os que as amam e os que as desprezam (com medo da sua carga de verdade); os que por meio delas procuram o sentido e os que, descrentes, só veem sentido nas coisas.
Há também os que não creem em coisa alguma fora delas – esses vivem a experiência do nada. E são, paradoxalmente, os que estão mais próximos de Deus. Pois Deus é por excelência a Palavra, o signo absoluto que só pôde ser criado a partir do desmesurado vazio. Mesmo essa ideia de vazio é metafórica, o que prova que só se pode pensar o sentido humano por meio do verbo.
Mas deixemos de filosofices e adentremos território mais concreto. Circular entre palavras é ter com elas, desde o início, uma relação não só intelectual como também afetiva. É ouvi-las e também senti-las, cheirá-las. Às vezes temê-las pelo que há nelas de abscôndito (palavra temível), cerebrino (também), sinuoso. O que rebaixa a criança diante dos adultos é não compreender o sentido de certos termos. Pelo menos comigo foi assim.
Fiquei intrigado, já lá vão muitos anos, quando meu pai sorriu com deleite ao ouvir pelo rádio o político dizer “minimizar”. O que havia de interessante em “minimizar”? Por que essa devia ser, naquele momento, a palavra adequada – tão certeira que provocou o sorriso espiritual do meu pai? Eu não conseguia entender e senti-me derrotado, mais criança do que realmente era. No dia em que descobri o que ela queria dizer, experimentei uma espécie de triunfo.
Preocupamo-nos com as nossas relações com as pessoas, mas ninguém se interessa muito por seu comércio com as palavras. Por que não parar um pouco e tentar escrever as memórias de nossas experiências verbais? Quem fizesse isso constataria que, a cada signo descoberto, ia-se alargando a percepção dos outros, do mundo e, sobretudo, de si mesmo.
Desnecessário é dizer que esse comércio envolve um lado nobre e também um lado negro, representado pelos termos pornográficos. Pensar neles é chocante e nos precipita em alguns tormentos morais. Aprender a palavra feia é um pouco aceitá-la, confundir-se com ela, perder a virgindade quanto a certos inconfessáveis propósitos humanos.
Lembro-me de que fomos vizinhos de um pessoal mal-educado, que não poupava nem eles mesmos das chamadas expressões chulas (esse adjetivo sempre me sugeriu mau cheiro, o chulé da linguagem). Numa discussão com os tais vizinhos ouvi um termo que, desde então, ficou soando para mim como o grande palavrão da língua.
O impacto do termo, que obviamente eu não sabia o que significava, deveu-se em parte ao horror de minha mãe. Convivi dias com essa palavra impenetrável e terrível, que se alternava em meus devaneios noturnos com a confortadora luminosidade do santo-anjo rezado antes de dormir. Era tudo uma questão de semântica; o termo chulo, com a sua fonética enigmática e rude, aparecia como a antítese do anjo – o lado da salvação.
Nem muitos anos depois, quando estudando Medicina deparei-me em Anatomia com a expressão “saco escrotal”, livrei-me da angustiante impressão que aquele termo provocara em mim. E olhem que tomei contato com muitos outros, cabeludos e terríveis – sobretudo no início da adolescência, quando o uso de palavrões é uma espécie de senha para ser aceito pela turma.
A experiência do palavrão é um triste mas necessário acidente de percurso. Geralmente modelado em “subalternas” partes anatômicas, ele confirma a intranscendente animalidade do nosso corpo, que pela palavra feia se revela mortal.