Se lhe mostro uma sequência de fotogramas,
depois digito e lhe exibo e/s/t/a// s/é/r/i/e// d/e// c/o/n/s/o/a/n/t/e/s//e//v/o/g/a/i/s, além de uma tira numa revista de h/i/s/t/ó/r/i/a/s//e/m// q/u/a/d/r/i/n/h/o/s, você terá vivido três experiências semelhantes.
Os gibis e o cinema funcionam com idêntica magia (ainda maior) da escrita — que se processa em sua mente, não fora dela — como se vê neste trecho:
L/a/n/c/e/l/o/t ar/r/e/m/e/s/s/a o m/a/c/h/a/d/o, q/u/e s/a/i g/i/r/a/n/d/o n/u/m v/ó/r/t/i/c/e a/t/é e/n/c/r/a/v/a/r-s/e n/o p/e/i/t/o d/e M/o/d/r/e/d/:
T-C-H-U-D!
- H-u-h!
- H-u-h!
Nosso cérebro, além de capaz de ler qualquer combinação de sinais que obedeça a uma convenção – como os de uma partitura, de uma equação num complexo cálculo de Einstein, de hieróglifos egípcios, de uma página em braile, tem o dom de recriar tipos, sons, locais e acontecimentos a partir de poucos dados que lhe sejam fornecidos. Jean Valjean, por exemplo, personagem principal de Os Miseráveis de Victor Hugo, é preso por roubar um pão, foge da penitenciária, sofre várias transformações para melhor e muda o nome para Madeleine, terminando prefeito de Montreuil-sur-Mer, sempre perseguido pelo Inspetor Javert. Além dessa sinopse, a única descrição física desse homem excepcional é dita de passagem quando ele ainda está nas galés:
Um miserável doué d'une force herculéenne, d/o/t/a/d/o//de//u/m/a// f/o/r/ç/a// h/e/r/c/ú/l/e/a.
Todo leitor do romance, no entanto, vê esse personagem durante a leitura. Cada um de um modo diferente, mas o vê. Se você é Billie August e vai adaptar o livro para o cinema, imaginará Jean Valjean como Liam Neeson. Se é Jean-Paul Le Chanois e vai fazer a mesma coisa, vê-lo-á como Jean Gabin. Se é Josée Dayan, seu ator será Depardieu. Se é Tom Hopper, o homem será Hugh Jackman – bastante conhecido por sua figura anterior, como Wolverine.
Mais uma prestidigitação mental:
Certa vez, lá pelos anos 50, quando eu era menino em Sorocaba, interior de São Paulo, estava contando um filme para outros pirralhos, quando usei um termo típico da região:
— Aí o Gary Cooper viu que tinham de bater em retirada, parou o cavalo, virando-se pros companheiros e gritou: Piniquemos!
A coisa me perturbou: como se dera a tradução para o nosso “dialeto”, na minha narração? Agora mesmo, quase setenta anos depois, procuro no Aurélio, no Houaiss, no Lello e na internet a definição de pinicar, e, de repente – Ah! – ela aparece com a acepção de esporear, pinicar o cavalo com as esporas – coisa lá do Sul – o que explica tudo. Mas continuo inquieto: O que acontece na nossa mente quando lembramos – como se fosse nacional — um filme legendado?
Veja narrativa igual, só que hilariante, de um filme, feita pelo Jessier Quirino imitando um matuto:
— O bandido isfregô o dedo na cara dele assim e disse “Num sei que lá, num sei que lá, num sei que lá, num sei que lá, seu fila da p***!!!”
Tu tá pensano que o artista teve medo? Oxe! Amarrado com imbira, do jeito que tava, ficô muito do tranquili, olhô assim pro bandido e disse: “Num sei que lá, num sei que lá, num sei que lá o c****!”
Tu tá pensano que o artista teve medo? Oxe! Amarrado com imbira, do jeito que tava, ficô muito do tranquili, olhô assim pro bandido e disse: “Num sei que lá, num sei que lá, num sei que lá o c****!”
E aí está a resposta que eu procurava: reencenamos o que contamos para nosso pequeno ou grande público, quando contamos um filme. Fazemos nossa versão da história, com a mesma criatividade com que nossa mente vai transformando em imagens o texto que lê, ou... vemos movimentos onde eles não existem.
A psicologia da Gestalt – “Forma” (Max Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka ) - tem uma frase célebre: O todo é mais do que a soma das partes que o constituem. Isso pode ser exemplificado com a junção dos ítens “casinha”, “riacho”, “coqueiro” e “sol” formando uma quinta coisa, que é a “p/a/i/s/a/g/e/m”. Era o que Eisenstein chamava de montagem de atrações: se você põe uma mulher de preto junto a um túmulo, diremos “V/i/ú/v/a”. Se põe um homem, uma mulher e uma criança juntos, diremos “F/a/m/í/l/i/a”. Foi assim que alguém da Mesopotâmia, há milênios, olhou para o céu numa de suas noites de vigília, viu um curioso grupo de estrelas, ligou os pontos - como num quebra-cabeças - e anotou:
— E/s/c/o/r/p/i/ã/o.
Bem,na mesma época do Piniquemos eu já me encafifava com o fato de sentirmos as narrativas veiculadas através dos quadrinhos com a mesma fluência obtida pelas letras nos livros e pelos fotogramas no cinema. Como que para confirmar a identificação, muitos cineastas se servem do storyboard — espécie de quadrinização esquemática dos roteiros - para visualizar melhor as cenas que têm de rodar. Veja dois dos desenhos do storyboard que fiz para o curta metragem A Canga, de Marcus Vilar, mostrando o momento em que eu, no papel do velho camponês, estalo o chicote e grito “Zefa!” — para a mulher, que ouve o berro, desamparada.
Falta ao storyboard, evidentemente, a intenção de alcançar um leitor não envolvido na história. Os desenhos, aí, são um meio, não um fim. Nas histórias em quadrinhos, além de maior acabamento, surgem acessórios vitais para a sensação de realidade que nos quer passar, como os balões para conter falas e pensamentos dos personagens...
... além das onomatopéias, que funcionam como as trilhas sonoras no cinema, na produção de ruídos.
Somos, assim, induzidos a “assistir” às narrativas quadrinizadas... como se fossem filmes, romances. Mas como seus autores conseguem isso? Voltemos à psicologia da Gestalt. Ela descobriu que a mente, se colocada ante imagens semelhantes estrategicamente combinadas, interpreta-as como sendo uma só e vê movimento nessa “imagem única”. Se você fizer um vai-e-vem com os olhos, de uma para outra ave, nas fotos abaixo, verá as duas como se fossem uma só, abrindo e fechando as asas.
É o que acontece com as duas esquadrilhas nas fotos combinadas abaixo (colhidas em dias e locais diferentes), montadas como sendo de um mesmo voo rasante, ficando realçada, na segunda, toda a velocidade do grupo:
Há sempre uma relação poderosa, nos gibis, entre causa e efeito, numa sequência que nos arrasta com ela. Quem já não viu o baixote Billy Batson gritando “Shazam!” num quadrinho, o raio estrondando no outro, o alto e forte, invulnerável e voador Capitão Márvel surgindo no terceiro, e não entendeu a transformação?
Os recursos já criados e a criar, no gênero, são infinitos. Às vezes as duas partes da ação vêm num quadrinho só, dividido em dois – causa e efeito - como neste, isolado, ampliado e reproduzido em famosa tela de Lichtenstein:
Veja, na breve sequência abaixo, como a identidade com o cinema é total. Einstein escreve sua famosa fórmula, no primeiro “quadrinho”e, no seguinte, o close a completa e realça.
Algo como se, em cena aberta, Robin, o garoto prodígio, dissesse, abatido, Esse cara torra dinheiro como se ele desse em árvore, ao que Batman responde: Não em árvore, Robin... e o close nos leva à importância do que ele fala a seguir: mas num pé de coca.
Montagens como essas – com imagens separadas - são conhecidas no cinema por externas. Um quadrinho raramente existe sem um anterior e outro, posterior, a não ser o primeiro e o último de uma história. Mas há, também, igualmente importantes, os quadrinhos com montagens internas. Como no cinema. É belíssima a cena em que Scarlett O´Hara para, horrorizada , em ...E o Vento Levou, no pátio da estação ferroviária, aonde fora a fim de conseguir socorro médico para a parturiente Melanie, e – no que a zoom começa lentamente a recuar – descobrimos que a heroína está entre milhares de feridos e mortos pela Guerra da Secessão – o afastamento terminando por enquadrar a causa de tudo, a bandeira confederada drapejando com um rumor de fogo, estalando ao vento, no alto de um edifício!
Veja o final dos quadrinhos de Terry e os Piratas. Repare nos cortes no tempo, na primeira série, e o quadrinho maior, largamente panorâmico, montagem externa junto de outra, interna, que fizeram Milton Caniff famoso.
Essa força interior é o que mantêm vivos os grandes quadros. Veja o Guernica. O que há numa representação única, imóvel, como essa, pra causar tanta impressão, num mundo em que a imagem em movimento se tornou absolutamente soberana? A resposta me veio de minhas aulas de pintura recebidas na adolescência: no caminho do olho:
Que caminho?
Eu mostro. Eis que você chega, com vários outros visitantes, ao Guernica - imponente por trás de uma espessa placa de vidro a prova de balas - nos seus 3,50 X 7,82 m.
Aproximando-se, seus olhos, de imediato, são atraídos por uma série de detalhes: pela lâmpada que explode em luz, no alto, simbolizando o horror e o absurdo do bombardeio pesado da Lutfwaffe sobre o lugarejo, pelo cavalo que relincha, enlouquecido, sob ela, pela cabeça do touro, mais à esquerda, acima da mulher que grita prostrada, com o filho nos braços, pelo cadáver no chão, segurando a espada quebrada, pelo homem que brada aos céus, no lado direito, pela figura que acorre com o candeeiro, em movimento para o centro da tela, pelo homem que cai de joelhos, no núcleo do quadro, olhando para a lâmpada acesa, e voltamos a recuar para o conjunto, agora inteirados da força de todos os seus detalhes.
O Guernica é um thriller em quadrinhos!
Mas o caminho do olho não existe apenas em fotos e na pintura. A escultura - como a arquitetura - não sobrevive sem ele. Ela obriga não apenas seus olhos, mas você a se mover ao redor dela, a se aproximar e a recuar... para vê-la mais e melhor Ninguém resiste, por exemplo, ante O Rapto de Prosérpina - maravilhoso mármore de Bernini - ao desejo de ver de todos os ângulos possíveis os efeitos da pressão dos dedos de Plutão na carne... “macia”... da jovem deusa:
Eisenstein, em Reflexões de um Cineasta, cita todo o trecho de um texto de Leonardo, em que o mestre italiano descreve um minucioso... roteiro... para um quadro sobre o Dilúvio (jamais realizado), onde são previstos flagrantes do céu terrível, da borrasca, do vento, das árvores arrancadas pelo vendaval e pelas enxurradas, prevê flagrantes das inundações, dos animais acuados pelas águas, dos homens e mulheres desesperados, dos gritos, das lutas mortais por espaço, das embarcações naufragando, etc, etc. Trata-se – diz o diretor do Couraçado Potemkin - de uma extraordinária folha de montagem, com a finalidade de determinar a trajetória do futuro movimento na superfície da tela.
OK. Por hoje chega.
Em tempo: nós todos vivemos numa história em quadrinhos!