O menino se chamava Bem-te-vi e só estivera na escola ano e meio, depois não foi mais. Também a mãe não fazia questão, preferia que ficass...

A história de Zeca Rico

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O menino se chamava Bem-te-vi e só estivera na escola ano e meio, depois não foi mais. Também a mãe não fazia questão, preferia que ficasse pela praia na travessia da balsa onde conseguia umas moedas, ou ajudando os pescadores na volta do mar, ou na cata de tainha na pesca de arrasto.

Em certa época do ano os barcos regressavam vazios, e não tinha lanço porque a tainha não vinha e também quase não havia ninguém para atravessar o rio. No entanto, ainda havia os jangadeiros que saíam pela madrugada.

Bem-te-vi avistou as jangadas chegando, correu para ajudar com os cepos e empurrar a embarcação para terra firme. Semana boa não precisava ir longe,
perto de casa mesmo os anzóis traziam peixe graúdo, cavalas e guarajubas que davam gosto de ver.

Mas ele não viu nada no lastro, e o samburá não parecia estar cheio. O homem balançou a cabeça negativamente para Bem-te-vi. Não tinha peixe. O menino espremeu o rosto querendo chorar. Em casa a mãe esperava por qualquer coisa para alimentar a família. O homem leu os pensamentos do menino, abriu o samburá murcho, retirou um peixe. “Tome, leve pra casa. Essa noite vocês não passam fome!”

Depressa e feliz o menino subiu o barranco de areia, desaparecendo entre as palhoças e as pequenas embarcações. Corria para entregar o peixe à mãe quando seu corpo foi bruscamente arremessado para o chão. Outro corpo desabou sobre o dele como uma avalanche.

Peroba era uma espécie de rato da praia, um tipo amargo, criado num ambiente miserável e de completo desajuste familiar. A vida de pedinte tornara a mãe alcóolatra e usuária de drogas, o pai também acabara degenerado pelas drogas e levado a cometer roubos e assaltos, crimes que lhe renderam anos de reclusão e uma mente ainda mais perturbada. O moleque seguia os passos do pai, era sua encarnação, a reencarnação da revolta. Com porte físico superior à maioria dos meninos da região, Peroba levava a vida a persegui-los e ameaçá-los.

Bem-te-vi chegou em casa choroso, olho inchado e sem o peixe. Naquela noite, em vez de pirão e carne, a mãe teve que preparar garapa de açúcar para enganar a fome dos filhos.

CUITÉ, inverno de 1977

Zeca tinha 15 de idade e morava com a irmã, Maria Helena e seis filhos. O marido havia morrido, de repente, deixando o peso da criação inteiramente nas mãos de Maria, que vivia debruçada sobre a máquina de costura. Mas eram seis filhos, o que ganhava não dava para garantir a mantença da casa. Para piorar, vez ou outra as encomendas escasseavam e nem sempre os clientes pagavam na hora da entrega. Zeca saía para deixar as roupas, era comum ouvir alguém dizer: "Diga a Maria que mando pagar".

Com vergonha de cobrar, Zeca voltava com as mãos limpas. Ao ver o irmão cabisbaixo a costureira enchia os olhos d´água.

— Querem pressa para receber e parece que não sabem que precisamos comer — resmungou.

A dívida na mercearia corria às alturas, o vendedor já fora generoso demais. Não era pra ir à mercearia.

— Não – disse Maria. – Vamos comer o que temos.

E tudo o que havia era feijão com arroz. Para a noite, apenas o que sobrasse do almoço. Chegou a noite e o vento frio uivou ruidosamente através do telhado úmido. A janta foi cedo, quase nada. Para os filhos pegarem no sono Maria Helena fez garapa de açúcar.

Dias se passarem e Zeca disse à irmã:

— Vou embora para Natal.

— Viver de quê, Zeca? Tu és um menino ainda...

— Ajudei seu Pedro aqui na oficina, posso fazer o mesmo por lá. O irmão dele também vai, é mecânico, tem emprego certo, me chamou para ir junto.

Na semana seguinte Zeca deixou a cidade com a promessa de que logo ia lhe mandar dinheiro. E mandou. Maria estava costurando quando ouviu alguém bater à porta. Era seu João. Entregou-lhe uma carta e saiu.
Depressa ela abriu a correspondência. Havia dinheiro e a notícia de que arrumara serviço. As últimas palavras diziam:

“Se depender de mim seus filhos nunca mais vão chorar de fome nem beber garapa de açúcar.”

As semanas e os meses tornaram a passar. Zeca aprendia, era curioso, esperto, dedicado. Tornou-se mecânico, o melhor da oficina. Os filhos de Helena cresciam, ela mudara de casa, uma casa forrada, mais confortável e nunca mais passara fome. Por isso e por tudo dava graças a Deus, que iluminava os caminhos do irmão, que nunca a esquecera.

Uma década depois Zeca teve um sonho. Acordou com um propósito, não sabia exatamente o que era, mas via aquilo como um desígnio. Disse para si que o sonho devia ser um sinal de Deus dizendo para ele seguir em frente. Durante vários dias ele remoeu os pensamentos lembrando do sonho. As imagens eram vagas, mas duas informações não lhe fugiam da memória: a marca Ford e a palavra “repetição”.

Certo dia aconteceu algo raro na oficina. O primeiro carro que chegou para conserto era da Ford, o segundo também e do mesmo modo o terceiro. Nesse dia todos os veículos que surgiram para reparo eram da marca Ford, e ninguém entendia tanto desses motores quanto Zeca.

Já era noite e ele continuava trabalhando. A maioria dos funcionários tinha ido embora, os que ali ainda estavam pareciam exaustos, Zeca demonstrava disposição e contentamento.
Havia nele um ar de felicidade e esse sentimento manifestava-se de modo tão intenso e radiante que um dos colegas, intrigado, perguntou o que ele tinha.

“Ele tinha entendido o sonho!”

Montou sua oficina, a única em Natal que atendia apenas veículos dessa marca. Era a mágica da “repetição.” O negócio prosperou e Zeca ganhou muito dinheiro, que foi empregado em novos e diferentes negócios. Comprou uma boa residência, imóveis na região do centro da cidade, terrenos, apartamentos e casas de praia.

Era um sábado de inverno e o sol abrandado pela atmosfera nublada começava a declinar no horizonte da praia de Barra do Rio. O mar avançava, as ondas explodiam nas pedras de contenção, molhavam as varandas das casas.

Zeca dirigiu o bugre para a balsa. Enquanto ela deslizava em direção à margem oposta ele pensou no ótimo negócio que acabara de fazer e deu graças a Deus por isso. “Inverno é o tempo de se comprar casa de praia”, disse para si.

A balsa alcançou a praia, Zeca ligou o carro e o manobrou em direção a uma bodega duas centenas de metros dali. Gostava de frequentar aquele lugar, pela simpatia do seu dono, pela boa conversa dos presentes e a certeza de nunca faltar sua aguardente preferida.

A maré estava subindo, sua força fez rolar pequenos troncos pela praia, dificultando a passagem. De repente viu um menino correndo para retirar os troncos. Ele tirou um punhado de moedas, deu ao menino, que agradeceu feliz. O menino era Bem-te-vi.

Quando entrou na bodega o dono da venda logo lhe trouxe o aperitivo que geralmente lhe servia. Nessa tarde o estabelecimento encontrava-se sem movimento, estando presentes apenas ele e o proprietário. Passado algum tempo Bem-te-vi surgiu, foi ao balcão e pediu um pacote de açúcar. Pagou a mercadoria com as moedas que tinha acabado de ganhar.

“Menino não compra açúcar, a menos que seja obrigado pela mãe”, disse Zeca para si enquanto o observava. Bem-te-vi pegou o pacote com a alegria de quem recebe um presente, e já saía quando Zeca perguntou:

— Foi sua mãe que pediu?

— Foi, sim senhor.

— Então deve ser para botar no café. Por que não leva o pão?

— Pão ainda tem lá em casa, mas o açúcar não é para café, é pra minha mãe fazer garapa pra gente tomar na hora de dormir.

Zeca encheu os olhos de lágrimas e perguntou:

— Está falando a verdade, menino?

— Estou sim, senhor.

— Então vai chamar tua mãe. Quero falar com ela.

Minutos depois Bem-te-vi voltou acompanhado da sua mãe. Era uma mulher de meia idade, um corpo magro, olhos fundos, feições tristes. Zeca perguntou-lhe se o menino falava a verdade. A mulher disse que sim e contou sua história, e sua história era semelhante a de Maria Helena. Naquele instante suas lembranças partiram para o passado distante, passaram um longo tempo lá. Quando finalmente voltaram, disse:

— Quero que faça uma feira, uma feira grande, de tudo o que realmente precisa em casa.

Sem acreditar no que acabara de ouvir, a mulher ficou paralisada por alguns segundos. Zeca balançou a cabeça apontando para as prateleiras. Só então ela se moveu e começou a pegar tudo o que precisava e em boa quantidade. Era tanta mercadoria que ela e o menino mal podiam carregar. Depois de muito agradecer, Zeca perguntou:

— Tem mais gente que passa necessidade na sua vizinhança?

— Todo mundo, senhor.

— Então diga que venham.

Em menos de meia hora a frente da bodega estava apinhada de gente, a maioria mulheres que traziam em suas expressões as marcas de uma dura realidade e a esperança de alimentarem seus filhos por algum tempo.

Vendo todas aquelas pessoas Zeca disse ao dono da bodega:

— Por quanto você vende todo o alimento da bodega?

Comovido por tamanha generosidade e sem acreditar no que via e ouvia, o homem fez uma avaliação aproximada de todo o alimento da bodega e lhe disse o valor. Zeca concordou com o preço anunciado, e pediu apenas para que tudo fosse acomodado em sacolas e entregue de acordo com a necessidade de cada uma daquelas pessoas. Ele mesmo ajudou a empacotar e distribuir as feiras. Bem-te-vi sorria, como a dizer que tudo tinha se originado a partir dele, na hora em que entrou e pediu o quilo de açúcar.

A maior parte das pessoas que estavam ali não sabia quem era Zeca, outras apenas o conheciam de vista. Ele olhava para cada rosto, cada expressão, cada movimento. Elas pareciam inquietas, risonhas, apressadas. Precisavam comer. Mas seus olhos, que viam tudo, naturalmente atraíram-lhe a atenção para um tipo moreno, magro, comprido, do lado de fora da bodega. Chamando à parte o vendedor, perguntou:

Peroba se aproximou do carro e Zeca, ao vê-lo de perto, percebeu que havia grande agitação em seu cérebro num misto de carência e miséria.
— Quem é aquele rapaz?

Não precisou de palavras para responder. O homem esboçou um gesto de pesada reprovação.

— Como se chama? – perguntou.

— O nome dele é Peroba.

Passado algum tempo ele se despediu de todos e entrou no carro. Algumas daquelas mulheres continuavam ali e foram até fora para vê-lo sair. Antes de ligar o motor, ele abriu o porta-luvas e pegou sua agenda. Dela retirou um cartão e chamou Peroba que também continuava ali.

O gesto de pesada reprovação do bodegueiro dizia que Peroba era uma espécie de rato da praia, um tipo amargo, miserável e desajustado. Mas para Zeca Peroba não passava de um adolescente que precisava de afeto, atenção e oportunidade.
Por isso o chamou. Sem acreditar, o rapaz apontou o dedo para o próprio peito, perguntando se Zeca se dirigia realmente a ele.

— Sim, você mesmo, venha aqui...

Peroba reagiu com extrema perplexidade, sem saber o que o esperava. As demais pessoas, inclusive Bem-te-vi e sua mãe, que ainda estavam por perto, demonstraram-se tão perturbadas quanto o dono do estabelecimento. Peroba se aproximou do carro e Zeca, ao vê-lo de perto, percebeu que havia grande agitação em seu cérebro num misto de carência e miséria.

— Eu tenho uma oficina e lá estamos precisando de ajudante. Quer trabalhar?

— Siim... Sim, quero, sim senhor! – reagiu nervoso e embaraçado, projetando talvez o primeiro sorriso da sua vida.

— Segunda-feira, sete da manhã – disse, estendendo-lhe o cartão.

Em seguida ele ligou o carro e todos o seguiram com o olhar até o automóvel desaparecer na praia.

A partir daquele entardecer o homem que na década de 1970 havia deixado o interior da Paraíba, fugindo da miséria, ficou conhecido em toda a região de Barra do Rio e da zona Norte de Natal como Zeca Rico, mas para aquelas mulheres Zeca era muito mais, era um anjo que saciara a fome dos seus filhos e lhes dera alegria e importância.
■ Texto inspirado na história real do cuiteense Joca Rico.


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  1. Uma história realista e do cotidiano de várias famílias.
    Desejo a todos que seu "Zeca Rico" sempre aflore e prospere!

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  2. Que Deus na sua infinita bondade derrame muitas bençãos sobre todos os que ajudam aos pobres,já nos dizia Jesus em suas palavras, dá de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vesti os nús, Deus abençoe todas as pessoas de bom coração ❤️ que ajudam sem exigir nada em troca...

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  3. Parabéns Célio! Por nos emocionar com uma história tão real.O mundo está mesmo precisando de muitos Zeca Rico. Que Deus ilumine a todos todos. Abraço.

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  4. Parabéns, Célio por tão emocionante história. E feliz pela merecida homenagem ao nosso histórico Joca Rico.
    Rico de coração e de atitude. Tem uma família linda e o nosso respeito e admiração.

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