A Rússia foi punida pelo COI (Comitê Olímpico Internacional) por uso sistemático de doping no esporte. Não pode competir como país, não pode ter seu hino nacional tocado. Sobre o fato em si eu só tenho dois comentários. O primeiro: não tenho nenhuma tolerância com a trapaça. Não me interessa se é comum, se todo mundo faz, se vivemos novos tempos, se existem novos meios. Se a regra é fazer, sozinho, uma prova em casa, é isso o que deve ser feito. Não fazer isso é demonstrar falta de honra. Nada menos que isso, Covid ou não Covid.
O segundo: não é de se estranhar que minha inclinação liberal insista na individualidade da punição. Não foi toda a Rússia que se dopou, ou todos os atletas da Rússia. Que esses sejam punidos. Se não for possível identificar, não é possível punir. Estão feitos os dois comentários, que não são o assunto deste texto.
Os russos, num gesto genial, passam a se identificar musicalmente com o primeiro tema, do primeiro movimento do Concerto nº 1 para Piano de Tchaicovski (1840-1893) em si bemol menor1 (e depois a gente reclama que os leigos erram; é complicado mesmo). Vamos deixar os trapaceiros pra lá e falar de Tchaicovski. Em tempo, já que o alfabeto não é o nosso, eu me sinto à vontade para escrever o nome como soa na minha língua, e será escrito assim neste texto.
A história do concerto é curiosa. Tchaicovski teria sugerido que o famoso pianista Nikolai Rubinstein (1835-1881) fosse o primeiro solista. Aparentemente, Nikolai a princípio detestou a obra e exigiu extensa reformulação. As razões são várias. Até a estrutura tonal da obra mereceu críticas do mestre conservador. Sua introdução orquestral em si bemol menor (que está no título) dá lugar imediatamente à relativa de ré bemol maior para o primeiro e famoso tema, um procedimento incomum. O compositor recusou-se a fazer tais mudanças, e pelos relatos que se seguiram parece que ficou profundamente magoado com o incidente. A obra acabou estreando em Boston (naquele país sem cultura, juram os esclarecidos) em 1875.
Ao longo do tempo, a obra firmou-se como parte fundamental do repertório pianístico. Diz-se que até o crítico N. Rubinstein ensaiou uma mudança de narrativa para declarar-se seu aliado de primeira hora. A popularidade intensa trouxe inclusive a habitual desconfiança que permeia a obra que atinge popularidade no contexto clássico. Sobre isso, e sobre uma má vontade generalizada da crítica quanto a Tchaicovski, há pouco mais do que uma ânsia desesperada pela exclusividade. Vai que você elogia uma obra e descobre que a moça que serve o chá das 5 sabe cantarolar. Ó a vergonha...
Enfim, a música e em particular o seu primeiro tema fixou-se como das músicas mais conhecidas do mundo ocidental. Há quem diga que o tema principal da trilha de Luzes da Ribalta de Chaplin seja um plágio. Eu digo que não, mas a histeria sobre direitos autorais é assunto pra outro post.
Já que falamos de Tchaicovski não custa refletir um pouco mais. Está muito claro que Piotr era gay. Seu “casamento” com uma nobre fã claramente um arranjo para que ela lhe pudesse financiar sem despertar maiores suspeitas. Piotr morre dias depois da estreia da sua 6ª sinfonia, chamada Patética (Quando a crítica se refere a uma obra como “Patética” — Apaixonada ou Doentia —, como fizera com Beethoven décadas antes, entenda-se “a que traz algo que não consigo classificar”). Em particular, esta obra traz seu segundo movimento em um assimétrico 5/4 levado com magistral naturalidade2, um terceiro que é uma marcha triunfal doida, uma celebração da vitória do indivíduo contra o destino. Tão triunfal que atrai aplausos entusiasmados dos leigos, que então levam um “shhh” no teatro, porque não se aplaudem os movimentos de uma sinfonia3.
A tal vitória é temporária, aparentemente. A sinfonia termina em um quarto movimento lento (literalmente “Adagio lamentoso”), dominado por um tema dolorido, centrado em uma escala descendente4. Perguntado sobre este procedimento incomum para fechar uma sinfonia, o compositor teria dito que a razão ficaria clara adiante.
Morreu pouco dias depois, como disse. A causa oficial foi cólera. Teria tomado água não tratada em São Petesburgo, onde a doença era endêmica, dias depois da estreia de sua sinfonia. Os detalhes em torno dessa morte são instigantes. É estranho que o Piotr que viu sua mãe morrer de cólera na adolescência tenha simplesmente desconsiderado a recomendação sanitária, já comum à época, de só tomar água previamente fervida. E, não poucos notaram, na tradição da igreja ortodoxa russa o anúncio da morte na comunidade é trazido pelo repicar dos sinos da igreja em uma escala descendente.
O comentário comum no meio musical dá conta de que o jovem pesquisador que vai defender a tese do suicídio de Tchaicovski conclui pela morte acidental e quem quer pesquisar a morte acidental invariavelmente acaba defendendo o suicídio.
Sem a pretensão de esclarecer aquilo sobre o quê nem os especialistas concordam, eu proponho uma outra reflexão, outro exemplo, em outra área: o exemplo de Alan Turing (1912-1954), o mestre da Ciência da Computação, autor de um belo teorema que investiga os limites desta área, de um artigo que discute o que hoje se chama Inteligência Artificial, contribuinte — não se sabe o quanto, até hoje a questão é segredo militar — na decifração dos códigos militares alemães na segunda guerra. Condenado por “indecência”, obrigado a “se tratar”, morreu envenenado, talvez acidentalmente.
São dois casos de seres humanos que trazem contribuições extraordinárias, que tiveram mortes violentas talvez induzidas pela ideia, moralmente indefensável, de que a prática sexual consensual entre adultos deva explicações a algum outro personagem. Algo que obriga toda a humanidade com uma dívida possivelmente impagável.
Voltando às olimpíadas, para fechar. Não há como negar que os russos, potência cultural que são, deram um tapa de luva nos algozes: se não podem usar o hino (que é uma beleza, diga-se de passagem), usam outra melodia, talvez ainda mais famosa, e inegavelmente ligada à Rússia. Só fico com uma dúvida. Alguém contou a história inteira pro Putin?