Estampada no jornal, a reação de um padre, de um pastor e de seus rebanhos, diante da escultura de Jackson Ribeiro, parecia a reprodução de uma página da Idade Média.
A princípio desconfiei, e até desejei, que fosse manobra política. Mas era coisa ainda pior. Uma metástase do câncer do obscurantismo e da arrogância. Doença que ataca as sociedades de todos os séculos.
A Santa Inquisição, com suas fogueiras que ardem até hoje, foi a epidemia maior. O símbolo que ficou para a História, como ficaram os Campos de Concentração de Hitler. Exemplos que a intolerância e o fanatismo insistem em reeditar, dando origem a novos e lamentáveis episódios.
O homem astronauta recebeu o mesmo tratamento que foi dispensado, na França, à célebre tela de Delacroix, "La liberté guidant le peuple". Durante muito tempo foi preciso escondê-la, até que encontrasse o lugar de destaque ocupado no museu do Louvre, ou como ícone das enciclopédias, quando precisam ilustrar a definição da palavra liberdade.
Não há dúvida de que o antídoto para o obscurantismo é a clarividência. Razão por que Gonzaga, em artigo seu, recorreu à crônica-ensaio do mestre Juarez da Gama Batista, A pedra, o ferro e o aço, que me apressei em remeter ao jornal, como a grande lição que faz falta nesse momento.
É possível que o padre e o pastor, lendo e compreendendo o texto de professor Juarez, escrito há 35 anos, possam conduzir melhor os seus rebanhos. Guiá-los para uma reação menos primária, ante a representação estética.
A indignação dos abaixo assinados que se anunciam contra uma escultura faz lembrar o comportamento dos irracionais diante do espelho. Eles atacam a própria imagem porque não têm capacidade de se reconhecer.
O mais surpreendente é que, tantos anos depois, ainda é a beleza que se cobra do artista plástico, em completa discrepância com a concepção estética dominante em sua obra.
Ora, Augusto dos Anjos já antecipava essa nova estética declarando-se talhado "para cantar de preferência o horrível". E o início do século vinte, o século passado, subverte, definitivamente, a estética do belo. Portanto, a falsa polêmica sobre O homem astronauta revela, entre outros aspectos negativos, uma completa ignorância sobre a História da Arte.
E não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propriamente a figura humana que os olhos do mundo viram pisar no deserto da lua. Mas um pacote disforme, inflado, trôpego e desengonçado, no qual seria impossível identificar os traços de Armstrong ou de Aldrin. E ainda havia a pergunta: Para quê? Pois a corrida espacial, consumindo cifras incalculáveis, sempre recebeu críticas, pelo sacrifício que impunha aos deserdados habitantes da terra.
Meio século depois, contabilizam-se os quase milagrosos avanços da tecnologia, refletidos sobretudo na área da comunicação. E, assentado sobre essa estrutura mágica, ergue-se o fabuloso mundo globalizado. O mundo sem fronteiras, da notícia em tempo real. É o que vem da ideologia dominante.
No entanto, quem não se deixa levar pela ilusão virtual, pelos efeitos especiais, sabe que o mundo globalizado instaurou, em proporções desastrosas, a mais cruel das violências. A violência da exclusão social, estabelecendo, entre privilegiados e deserdados, em lugar de fronteiras, fossos onde se sepultam todas as tentativas de transposição.
O grande aceno, como promessa de futuro, é a inclusão digital. Mas sem a inclusão da moradia, da alimentação, da saúde e da educação, exatamente nessa ordem de prioridade, falar em inclusão digital soa como uma ironia, sustentada pela perversidade. Existe imagem mais chocante do que a realidade de uma escola em ruína, com professores desfigurados e o espanto do aluno miserável e analfabeto, diante de um computador?
São contradições dessa natureza que se condensam na escultura de Jackson Ribeiro. Expressão cada vez mais atual, em sua aguda consciência da precariedade. A sucata, que substitui os materiais nobres da arte tradicional, expõe não apenas a condição a que se reduzem os seres na civilização do ferro, da pedra e do aço, mas o próprio mecanismo da estranha fábrica de entortar homens, que é o mundo globalizado.