“Toma um fósforo! Acende teu cigarro!” Já se vão mais de cinco décadas desde que ouvi esses versos pela primeira vez. Quem os citava era um colega do Liceu Paraibano apaixonado por Augusto dos Anjos e que sabia de cor quase todo o “Eu”. Ele sublinhava com tragadas esparsas o recitativo e assumia um tom lúgubre, que realçava o pessimismo do poema. Um dos versos era de descrença profunda no amor – dizia que a “pantera” da ingratidão é a inseparável companheira do homem.
Meu colega de classe foi a primeira referência que tive do poeta. Ela vinha pela boca de uma pessoa simples, que não entendia muita coisa do que estava dizendo mas não conseguira escapar ao magnetismo daqueles vocábulos cortantes. Neles se falava em beijo e em escarro, em afago e apedrejamento, como se o autor, para revelar dimensões sombrias do ser humano, quisesse ir além das convenções poéticas. Na ingenuidade de seus 17 anos, o estudante refletia o deslumbramento que Augusto provocava no homem comum, que nunca precisou de bagagem intelectual para compreender aquela poesia esdrúxula e estranhamente musical.
Estas noções sobre a poesia do paraibano eu só adquiriria depois. Passaram-se muitos anos antes que eu tomasse contato com seus versos. Curiosamente, a empolgação do colega não encontrara eco em mim. Eu achava mais interessante ler Bandeira, Drummond ou Cecília Meireles, em cujos poemas era perceptível o legado dos modernistas de 1922. Com seus decassílabos rimados, Augusto parecia estar na contramão da modernidade. Certamente foi por isso que os modernistas (com exceção de um outro que chamou a atenção para a estranheza da sua fonética de “estampidos”) praticamente o ignoraram. Para eles, Augusto era mais passado do que futuro.
Quando enfim o li tive uma revelação fortíssima, dessas que nos trazem uma percepção nova e radical do que é poesia. Até então a linguagem me parecia um filtro que separava o artista do mundo. As metáforas, com seu poder transfigurador, serviriam mais para “isolar” do que para inserir o poeta na múltipla e por vezes fétida realidade da vida. Sons, melodias, ritmos, em consonância com os ideais clássicos de equilíbrio e harmonia, pareciam apontar para um limbo eufônico em que tudo soava rarefeito, quimérico. Como se lêssemos poesia para sair do mundo, e não para mergulhar nele.
O que encontrei no “Eu” foi o oposto de tudo isso: um desejo não de pairar ou transcender graças às prestigiosas asas do Belo, mas de “consubstanciar-se com a imundície”, captar o mundo em sua concretude material, revelar a tragédia humana a partir da efêmera vida do corpo. Daí as inúmeras referências à doença, à disformidade e à morte, destino final da matéria. Para traduzir tudo isso era preciso uma estética nova, marcada pela dissonância de imagens e sons.
Impressionaram-me sobretudo as frequentes referências ao sentimento de culpa, que no poeta aparecia de forma intensa e generalizada. Como se ele sozinho fosse o responsável por uma transgressão universal e devesse, por isso, pagar pelos pecados de toda a espécie: “Ah! Com certeza, Deus me castigava!/ Por toda a parte, como um réu confesso,/Havia um juiz que lia o meu processo/E uma forca especial que me esperava!” A pungência de versos como esses me despertou a vontade de investigar-lhe com abrangência e rigor a obra. Augusto terminou sendo objeto da minha tese de Doutorado. O desafio era enorme, tendo em vista tudo quanto se escrevera sobre o seu único livro desde a publicação, em 1912. Como estudá-lo sob um enfoque novo? Como ser original tratando de um autor com tão variada fortuna crítica?
Minha preocupação não foi ser original, foi ser rigoroso. Eu quis sobretudo entender a melancolia que se impregnava naqueles versos, levando o eu lírico a rejeitar a sexualidade e perseguir uma Unidade supostamente perdida nos primórdios da história humana. De que Falta ele se recriminava para, como um novo Édipo, se sentir furado por pregos e alfinetes, esmagado por pesos e cargas? Senti que estava diante de uma representação desesperada e vigorosa do pecado original. Só isso explicava a culpa desmedida. Só nessa perspectiva era possível compreender o “desejo de ser Cristo” para sacrificar-se pelos homens.
Deixei de lado considerações biográficas, uma armadilha fatal para quem estuda um poeta tão singular. Preferi me concentrar no material linguístico, embora sabendo que muito do desespero contido na obra refletia a situação decadente do Pau D’Arco, que agonizava. Se a neurose do poeta devia-se em parte à influência da mãe nervosa, ou ao desejo incestuoso pela irmã Francisca, isso me pareceu secundário. Preocupava-me não a gênese mas a representação da culpa, que se traduzia nos vários níveis da linguagem: fônico, sintático, morfológico, semântico. Mesmo a vinculação do sentimento de culpa ao pecado original, que percebi desde os primeiros contatos com os versos de Augusto, ficou em meu trabalho sem um maior desenvolvimento teórico-crítico. Talvez algum estudioso venha no futuro a desenvolver o assunto, que se insere em domínios como o da teologia ou da psicanálise jungiana.
Augusto dos Anjos é desses poetas que pedem muitas leituras. Deve ser lido por diversos prismas, cada um deles iluminando um ângulo novo da sua obra romântica, barroca, simbolista e, ao mesmo tempo, moderna. Seus versos falam de temores e anseios cruciais no ser humano, cujo maior desafio é conciliar a porção animal com a aspiração de se elevar a dimensões transcendentes.
Augusto não propõe um caminho, não chega a uma síntese. Mesmo porque, não sendo um místico nem um filósofo, ele não tem essa função. A linguagem é sua matéria e seu horizonte. Seus poemas são, basicamente, um testemunho do poder regenerador da arte. Só ela, conforme escreve o poeta em “Monólogo de uma Sombra”, é capaz de “esculpir” a dor humana e transformar em planície amena a “aspereza orográfica do mundo”.