Prêmio Jabuti de Poesia 2015
Por coincidência, poucos dias antes de ler esse livro de ALEXANDRE GUARNIERI, eu resenhara o ERRE BALADA, de Biu Ramos, em que o dito R. morre “com uma faca nas entrelinhas”, daí que se lê no seu epitáfio, isolado na última página:
Aqui jaz Digitus Erre Linhares.
Cap. 1, pag 13 – cap. 25, pag. 98.
Sua vida foi um livro aberto.
Cap. 1, pag 13 – cap. 25, pag. 98.
Sua vida foi um livro aberto.
Guarnieri escreve na página 16 de Corpo de Festim, em sangue | suor / e celulose (ii):
o sal que cada talho
encontra, arde, demora a curar
a chaga criada por cada frase exata /
todo golpe, pancada, cada agressão
que se aplique, fulgor, alarido de sílabas,
busca sobrepujar no parágrafo o que tinja
ou apenas preencha a claridade da página,
que seu terreno, até então anêmico,
esteja repleto / são números e letras
de chumbo o suor de sua pele impressa.
A fusão corpo/livro é corroborada na página 24, em \\ livro aberto //:
de pele é revestido o corpo, tecido
vivo \ no livro, chama-se capa
( o couro sob o título ) \ abri-lo:
gráfico grito \
Bem, pergunta-se: por que isso, em Alexandre e Biu? Porque não querem o leitor ofuscado pela ilusão literária. Buscam o que, no teatro, se chama “distanciamento brechtiano”, que tenta – cf a Wikipédia – tornar claro ao espectador que ele está frente a uma obra de arte, "de que a representação teatral é uma ilusão." Talvez nem fosse necessário. O título já é bastante eloquente. Google de novo:
Festim
s.m. Festa particular.
Refeição de pompa, banquete suntuoso.
Cartucho sem o projétil ou bala para tiro simulado.
“Banquete suntuoso”. Corpo de Festim é um banquete suntuoso, sim, como o livro anterior de Guarnieri - CASA DAS MÁQUINAS. Quanto aos cartuchos sem chumbo, lembro que fui um pistoleiro de aluguel - no meu primeiro filme como ator – “O Salário da Morte” – em que, logo de cara, dei vários disparos de 38 à queima-roupa em minha vítima, que cai morta sobre um tabuleiro de gamão. Na vida real, porém, sem que se percebesse, desviei minhas balas de festim – por um lance de intuição - um pouco para a sua esquerda, e todo mundo se assombrou, em seguida, ao ver os cinco buracos feitos pela cera, na velha porta fechada que havia atrás. Assim, também “indevidamente” fulminantes são os versos de Guarnieri. Porque têm muita beleza e força.
Seguindo uma mesma linha de Casa das Máquinas, o corpo humano, de CORPO DE FESTIM, é – como vimos – literatura... e máquina.
No meu romanceamento do Édipo Rei, que é parte de minha História Universal da Angústia ( Bertrand Brasil, 2005 ), se lê isto:
– (...) Sei que somos todos robôs da trilionésima trigésima primeira geração, o modelo R-3.000.031, e que nos autorreproduzimos levados pelo “amor”. Com aparente autonomia, acabamos acreditando até que temos alma – eterna – e que somos livres. Porém.... quanta coisa desconhecemos de nossa programação e funcionamento, inclusive os labirintos de nossa mente!
Isso não é novidade: Hamlet já diz sobre si mesmo, em sua tragédia, ato II, cena II: this machine.
Wikipedia:
Hamlet Machine é uma obra do dramaturgo e escritor Heiner Muller, um dos grandes nomes do teatro alemão. Foi escrita em 1977 e inspirada em Hamlet, de William Shakespeare.1 Na peça aparecem as catástrofes da história e da cultura ocidental, além da crise do artista e intelectual, dividido entre o desejo de se transformar em uma máquina sem dor ou pensamentos e a necessidade de ser um historiador desse tempo conturbado do século XX.2
Wikipedia:
O médico francês Julien Offray La Mettrie, em seu ensaio L’Homme-Machine [O Homem-máquina], desenvolveu em 1748 o conceito mecanicista do ser humano, não só através do estudo de seu próprio corpo, mas também de sua alma. A partir de seus estudos sobre ciência natural e anatomia, La Mettrie defendeu sua tese especialmente ousada para a época, dominada pelo pensamento cristão, de que o corpo humano é uma máquina que funciona mediante uma mecânica metabólica
Bom,
novidade ou não, é o modo de meu Édipo entender como pode haver – segundo a tragédia que vive e que confirma o oráculo de Delfos - um destino mecânico, fatal, do qual não consegue se livrar. É o modo de Guarnieri fazer uma novíssima leitura do ser humano, pondo o corpo como objeto de grande beleza, como a que as máquinas, resultado de uma lógica funcional, sempre têm.
Beleza.
Daí que a todo momento ele reinventa a poética e a estética, enquanto disseca (ou monta) o Corpo de Festim, como se o fizesse com lápis de ponta extremamente fina:
- (na ampulheta viva /
sangue é tempo )
(...)
com endereço fixo, todo homem tem o corpo como o próprio logradouro.
(...)
(Do crânio) escapam-lhe tantos juízos – como se fugissem pássaros
(...)
acompanha o corpo este túnel obscuro,
d ú b i o / l ú b r i c o , s u j o / ú m i d o , a o
longo da coluna – quando ereto, sua
v e r t i c a l i d a d e s e s u j e i t a à f o r ç a d a
gravidade e quando não, há tão somente
– silenciosa – a peristalse.
Corpo de Festim – “Antropoemas”, como se define - é resultado de toda a cultura ocidental. Fatal que gere comentários eruditos como os de Mauro Gama e Jorge Elias, que encerram o livro. E nele mesmo rolam nomes como – de repente - os de Botero e Giacometti pra falar de corpos que vão de um extremo a outro, em termos de volume, ou da obra de Christo, para significar “pele” .
O final é antológico. Como um grande monólogo, em que ele diz coisas como
EU fundo o poema
no qual me refugio sozinho (dr. jekyll ou mr. hyde),
(...)
Frankenstein (criador e criatura), sou o autor deste poema (onde o excêntrico cientista e a brutal criatura se misturam), sou EU o prisioneiro solitário desta cela simétrica a 35 graus centígrados
Que dizer de Corpo de Festim, depois disso?
Guarnieri me lembra novamente o Biu Ramos:
(...)
“desisto de permanecer no cio desse rossio, nesse recinto sonoro de letras ciciosas e me esquivo, insidioso, e me livro de encontrá-lo do outro lado, no virar da página, na linha de chegada, me ausento, austero e frígido, da cópula contigo, meu leitor (o rei que deponho do trono da alteridade), eu me livro de você."
eu me livro de você.
OK, Ok, eu já estava de saída, mesmo.