Meu tempo inicial de formação artística em parte se gastou, como é recorrente, num tanto de tanto procederes incipientes, devidamente aí refletido o perfil recorrente e tecnológico da nova cultura abaixo da linha do Equador, e para a qual, da parte colonizadora avultou sempre a falta de apreço, e cujo simplismo grosseiro de certos conceitos por ela produzidos, foi sempre uma antitética resposta encontrada para a complexidade, riqueza e diversidade dos trópicos.
Inevitável se desconfiar da impropriedade de alguns recursos ainda enigmáticos da flora, de algum tipo primário de combustível fóssil, e também do incipiente acervo iconográfico que, mal divisado no horizonte estético em formação, não demora a ser suplantado por nova simbologia, esquemas e padrões, frutos normalmente dos últimos rearranjos do poder exógeno.
Um exemplo dessa dispersão icônica (e cenográfica) em sociedade não emancipada, foi vivida pelos pioneiros trovadores de minha terra natal, Teixeira – Pb. Viram-se – Séc. XIX – obrigados a ilustrar as capas dos livretos (à feição dos romances de cavalaria, suas gestas de amor proibido traziam, por excelência, o caso de amor entre um vaqueiro e a filha do fazendeiro) copiando a aura gráfica de Belle Époque que normalmente envolvia um galã e sua heroína, e de cujo rebuscamento estilístico os distribuidores de filmes – os mais próximos deles sediados em Recife – se utilizavam para cunhar os cartazes publicitários que faziam chegar até aos rincões do Nordeste. Deslocada em tempo e espaço, porém, tamanha impropriedade ilustrativa só perdurou até o dia em que Francisco das Chagas Batista recorreu à impressão xilográfica para expressar elementos consagrados pela paisagem e cultura nordestinas, como as vestimentas do cangaço e das lidas do gado, o vestido de chita da donzela, o jegue, o cacto, etc.
De meados do século XX em diante, e na interminável esteira do Sputnik, a Indústria Cultural começou a nos trazer uma Arte tão estilhaçada em tendências e formas quanto fora essa fragmentação induzida pelas duas grandes guerras anteriores, que tiveram como severa consequência a divisão do mundo em metades antagônicas. Algumas dessas facetas da Arte, porém, havia de nos chegar de antemão priorizadas, e já perfeitamente naturalizadas por um discurso aliciador que não dispensava certos recursos da poesia edificante, e ainda enfocava alguns de seus personagens em tom altissonante e mais apropriado ao heroísmo romântico do século anterior.
A Indústria Cultural havia elaborado essas histórias que, meados do sec. XX, começaram a aportar em bancas de revistas, e que ali não eram mais que a ponta visível e apelativa de uma consagrada estratégia de dominação intelectual, cuja versão acadêmica se escondia por trás daquelas formas “taxonômicas” e politicamente descontextualizadas, de catalogar e seccionar tanto elementos naturais quanto fenômenos de segunda ou terceira natureza, uma prática nascida das necessidades mercantis do antigo Gabinete de Curiosidades – aquele colecionismo do século XVII que acabou dando origem a uma série de disciplinas que, a partir do período pós-mercantilista, viriam a compor parte significante do leque das capacitações acadêmicas. Essa mesma prática cujo interesse está centrado apenas na própria morfologia, havia, pois, invadido o mundo das Artes e da Literatura, e era a antítese de outras formas vítimas de menosprezo porque depreciativamente rotuladas como panfletárias – como se a obra da Renascença inteira não tivesse se transformado em mais um panegírico da Igreja Católica, a despeito dos ‘novos’ parâmetros estéticos nela introduzidos, que nada mais eram que uma retomada do cânone greco-latino.
Longe de ser inocentes, aqueles relatos em sua versão mais popular, tratavam de elidir qualquer aproximação histórica com os fatos que, em seu devir, acabariam dando origem ao conflito estético vigente, o qual não vinha nunca colocado em termos estético/políticos, mas estético/estruturais, e onde, pelo lado ocidental, aquela dicotomia se havia em parte naturalizado com base no falacioso simplismo de que, assim como a Ciência, também a Arte caduca, e nem de longe, segundo nos queria fazer crer essa mesma Indústria, o suposto antagonismo entre figuração e abstração, por ex., seria fruto daquele conflito maior que passara a distorcer quase todas as informações transitáveis na terra, de maneira que um jovem artista precisaria contar com alguma afiada dose de senso crítico, mais um mínimo de informação histórica e de geopolítica, caso tivesse a pretensão de criar sua Arte em sintonia com as verdades emanantes tanto da realidade social em que estava inserido, quanto de seu próprio e inegociável mundo interior, quando se veria então na obrigação de construir para si uma narrativa que, na medida do possível se ombreasse aos novos cânones impostos, mesmo que esta não fosse além de um solilóquio íntimo, sem canais comunicantes com o mundo externo a não ser através das formas que lhes davam origem (das quais ela era o lastro semântico), e/ou dos estranhos mundos que eventualmente pudessem estar sugerindo.
Para isso, teria de, primeiramente, fincar os estaqueamentos de alguma urgente plataforma logística não só para sua própria seguridade ética, mas também para personalização de conceitos sobre produção, sua, e por que não, de outros. Um grande esforço para se manter em nível de respeitabilidade intelectiva (o que, a nível acadêmico, por ex., era quase impossível, restando-lhe entre as poucas opções o rótulo “ingênuo”, legitimado que seria pela norma canhestra da técnica), sem ter de seguir à risca aqueles supostos derivativos teóricos da Arte Moderna, e que sequer eram unanimidade nos Estados nacionais da Europa que lhes davam origem, mas que, bem ao estilo tardio das colônias, nos chegavam sem a menor abertura para questionamentos.
Não se tratava, absolutamente, no meu caso, de ter de criar uma daquelas linguagens plásticas que teriam obrigatoriamente de ser, por si e de longe, identificáveis. Obedecer a uma característica de produção que, nas décadas seguintes ao pós-guerra, fora condição sine qua non para um artista obter seu mínimo de êxito mercadológico, e cujo foco temático se prendia, via de regra, a uma determinada faceta do cotidiano que esse artista tinha aprisionado em alguma inefável gaiola de seu tesouro particular, e cuja fenomenologia estética havia de se repetir numa inalterabilidade de tempo e condições que, por si, a blindava de todo contexto restante naquele mundo que então já se havia tornado, inexoravelmente e pela luta inevitável do bem contra o mal, para sempre bipolar. Mas já para meu entender, que não poderia deixar de ser à época visceral e intuitivo, a criação de plataformas logísticas para a linguagem era interesse menos de mercado que de artistas, para quem havia de funcionar como uma espécie de ‘motor eólico da alma”.
A introdução em meu trabalho do universo abstrato das formas veio de certa forma ‘desconstruir’ – entre outras coisas – algum ideário que, eventualmente me movesse naquele sentido de atender um pré-requisito
Alberto Lacet
que fora indevidamente açambarcado pelo mercado, e esse novo procedimento que, muito provavelmente, viera se cerzindo num tecido fragilizado por incertezas e indagações, aparecia primeiramente – enquanto elemento composicional – como um desestabilizador daquela minha escolha preferencial pela figuração, pois, sem saber, havia introduzido nos entornos desta um vetor cuja dinâmica comprometia o todo, por causar alguma vertigem, algum vago efeito caleidoscópico atuando como diluidor dos elementos em jogo na tela, embora ao mesmo tempo incorporasse novos e estranhos signos que surgiam, os quais, postos lado a lado com o tradicional, assumiam conjuntamente sua indistinta importância. Acontece-me, às vezes, rever algumas dessas imagens e trazer à mente o potencial de seus significantes, ciente que sou, de antemão, de terem em seu próprio tempo de gestação, aberto para mim, aqui acolá, alguma janela para outras potencialidades adormecidas. Num olhar mais atento, essa dialogia entre Artista e obra me leva a tentar eventualmente enxergar em algumas delas uma possível precondição demiúrgica, uma ferramenta ainda um tanto mística, gerada possivelmente pelos acasos do trabalho, porém dirigida para o autoconhecimento ou para os desvelamentos da realidade. Suspeito que esse componente de associação psicológica, presente no mergulho inconsciente que a elaboração de formas abstratas requer (pelo menos no meu caso), possa vir a favorecer no trabalho final até mesmo a irrupção de alguma instância premonitória.
Algo parecido com isto, por ex., posso encontrar em "Escrita em Redução para Duas Figuras", uma obra que, de uma forma talvez mais profunda, consegue se relacionar com um discurso sublingual e recorrente em meu trabalho, o qual – e conceitualmente – se desenvolve através de interações do tipo Conteúdo & Continente, Criador & Criatura, Produto & Embalagem, e, por extensão, Estrada & Fluxo, etc. De forma estranhíssima, essa obra alude a uma preocupação geral e de natureza geopolítica no mundo de hoje, que é a estrada da internet, através da qual são plantados, colhidos, armazenados e comercializados os chamados pacotes de dados. O que são eles? Eles são – simplesmente — os novos barris de petróleo da economia.
No quadro, o homem é ontologicamente representado em sua continuidade temporal pai/filho. No corpo do homem inscreve-se o número 5, um pouco mais para o lado e para cima, fica difícil não fazer uma associação desse número com a imagem da letra G.
Alberto Lacet
Nessa ordem de leitura, encontrada aí a sigla 5-G. O menino levanta os braços, que circundam uma espécie de pote (na infância do homem civilizado acha-se o vaso cerâmico grego, enquanto recipiente de valias, situado historicamente entre o cesto de junco neolítico e a relativamente recente escalada mercadológica compreendida em seus estágios de barril, container e pacote de dados. Além de servir como unidade de medida, o vaso grego foi o primeiro a agregar conteúdo artístico a um simples suporte de tráfico mercantil – providência inicialmente tomada como medida de concorrência em relação a Creta), esse vaso se encontra em uma estrada aérea pontilhada de estranhos objetos, numa ponta da qual se vê algo parecido a uma antena retransmissora de sinal de rádio. O menino toca o vaso com a ponta dos dedos. O vaso é raiado ao modo de um instrumento musical de cordas, ou teclas, ambos digitáveis. Por ser de 1992, essa pintura é anterior a qualquer notícia que então se pudesse ter a respeito do que estava por vir em termos de tecnologia das comunicações. O que isto quer dizer, afinal? Não sei. Talvez aluda ao fato de que uma Obra de Arte nem sempre pontue por uma busca de eventos significativos no tempo, mas que este, enquanto grandeza móvel, possua talvez a propriedade de encontrar e identificar uma Obra de Arte. Ou ainda, que uma silenciosa expansão da própria linguagem seja para o artista a hélice propulsora que o permita mover-se num sentido mais acima do meramente perfunctório.Texto do livro Alberto Lacet ■ Pinturas
Apoio Cultural SESC Paraíba Prefácio de Maria de Fatima dos Santos Chianca, arquiteta e museóloga. Vendas pelo WhatsApp: (83) 9 88 75 73 21
Apoio Cultural SESC Paraíba Prefácio de Maria de Fatima dos Santos Chianca, arquiteta e museóloga. Vendas pelo WhatsApp: (83) 9 88 75 73 21