Quando criança, eu costumava convocar Deus para consertar tudo: de falta de ar a brinquedo quebrado. Minha mãe, que acreditava com convicção em Deus e me amava com fé, saía do sério, colocava a fé em crise e me admoestava com firmeza, insistindo para que eu não invocasse o nome de Deus em vão. Lentamente, fui aprendendo a lição; gradualmente, fui guardando Deus para as situações limites. Por isto, causa-me sempre grande espanto a convocação diuturna de Deus para a resolução de tarefas que qualquer ser humano normal pode levar a efeito; principalmente, causa-me indignação e repulsa a convocação de Deus para atos que desmerecem ou até negam os princípios de qualquer religião.
Em qualquer grande fila, é difícil não encontrar uma mãe que fez uma promessa para não mais comer carne nas sextas-feiras, se desta vez seu filho for aprovado no vestibular, pois foi só assim, com promessa idêntica, que o filho de “das Dores” foi aprovado, após ter sido reprovado três vezes. Não passa pela cabeça dessa mãe que há um número limitado de vagas e que Deus, para eleger o filho dela, teria de, obrigatoriamente, excluir o filho da outra, talvez mais necessitado ou merecedor do que o filho dela? Não seria mais racional e mais eficiente (embora mais difícil) tentar conseguir que o filho estudasse três expedientes por dia de segunda a sexta?
Vemos na televisão, em horários de futebol, em sessão pública para todo esse enorme e desconjuntado Brasil, jogadores se benzendo (a maior parte, inclusive, repetindo, pela força do hábito, mecanicamente o sinal) e pedindo a Deus para ganhar o jogo. Ora, considerando que Deus estivesse sintonizado naquela emissora, naquela hora, a que prece ele iria atender, se todos os jogadores dos dois times pedem a mesma coisa? Considerando que nenhum dos dois times fosse composto só de edmundos, só haveria empates neste país.
Mas há pior: os religiosos. Já vi religiosos de todos os credos convocando Deus para vestir a canarinho em jogos das eliminatórias ou da Copa. Celebra-se missa, faz-se vigília, realizam-se culto e sessão, espírita ou de candomblé, tudo para lembrar a Deus que Deus é brasileiro, pois às vezes ele esquece, e dá em 1950, 1966 etc. Será que nem essa gente, aparentemente mais próxima de Deus, entende que Deus tem o que fazer, que ele vive pisando em ovos, para não pisar nos astros distraído, que somente ele pode reger a sinfonia universal das galáxias? Sem contar que ele tem enormes sessões diárias de terapia para poder aceitar a sua equivocada idéia de ter dado livre arbítrio ao homem e, principalmente, para suportar as notícias que lhe chegam sobre a condução da pandemia no Brasil .
E há a paradoxal comemoração divina dos lutadores: no final da luta, o vencedor ergue as mãos para o céu, agradecendo a Deus por ter espancado o outro lutador, que está prostrado no chão, sangrando e cheio de hematomas. Temos, também, a figura do pistoleiro, que, antes de cumprir friamente o contrato, vai à igreja encomendar a alma de sua vítima e pedir a Deus para não errar o tiro, matando a pessoa “errada”.
Os presídios estão com ladrões e assassinos saindo pelo ladrão, e, é claro, no caos jurídico brasileiro, certamente há inocentes. Mas mesmo alguns criminosos reincidentes, pegos com a mão na massa sangüínea alheia, quando entrevistados por esta maravilha da sutileza humana que é o repórter policial, vão logo confessando que vêm rezando muito e que Deus levará a justiça a absolvê-los.
E que dizer da quintessência do mal: a maioria dos políticos? Todos eles trazem o nome de Deus na ponta da língua cínica. Absurdamente, não importa qual seja a situação, causa ou pergunta, Deus abre ou encerra sempre o período ou o discurso do político. O pior é quando encerra, pois, em geral, dá em bucha humana para canhão. Para exemplificar apenas com um caso americano, lembram de Bush? Aquele irresponsável terminou seu discurso assim: “Vamos à guerra. Deus salve a América.” E tome genocídio!