Nesse tempo de isolamento, abri mão da diarista que, duas vezes por semana, vinha deixar minha casa limpa e perfumada. Nunca fui madame. Dei muito duro na vida, na casa, no trabalho, com filhos e tudo o mais. Mas sempre deu pra ter uma trabalhadora em casa, com carteira assinada, e-social, férias, décimo terceiro e todos os direitos trabalhistas. O dinheiro do mundo todo era pouco, para que eu pudesse trabalhar, ter uma cabeça pensante, tempo, principalmente esse, para desfrutar outras coisas da vida. Claro que, desde pequena, tive obrigações: fazer a cama, arrumar o quarto... e sempre nunca gostei dessa parte. Para minha vergonha, nunca precisei lavar totalmente um banheiro. Limpar, limpei muito, mas lavar de água 'pra que te quero', vassoura em punho e os azulejos cheios d'água, não.
Depois de muito limpar e passar pano em tudo, resolvi estrear nessa modalidade de limpeza. Era preciso. Levei balde, vassoura, rodo, detergente, água sanitária, estopa etc etc, e comecei. Quando o chão estava com dois dedos d'água, dei início ao ritual. Primeiro o vaso, bucha limpa, perfex; depois sabão em pó no chão, até as bolhas começarem a dançar. O box, o vidro que estava manchado, e eu feliz. Fiquei a pensar nos meus estudos, nas aulas do doutorado na UFPE, em textos como “A Arte como Procedimento” de V. Chklovski, e na minha inutilidade nesse ofício a que me propunha.
Quando dei por mim, estava dançando, mas não era de alegria, não. O chão ensaboado, tive que patinar sem ser no gelo, para me equilibrar e não cair. E enquanto escorregava nas bolhas de sabão, lembrava de: Hein, Walter Benjamim? E “A obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”? . Nesses tempos de reclusão, tudo o que eu não queria era levar uma queda. E quanto mais eu tirava o sabão e a água, mas ela se multiplicava, feito aqueles germes que se cultivam para probióticos. Pra piorar, o meu banheiro é grande, mas a sagacidade dos arquitetos faz tudo meio espremido em cantinhos que, só de joelho, alcançamos os sujos. Aí pensei, em Roland Barthes e O Prazer do Texto. Nesse momento, o anti-prazer era sim, a minha inabilidade com a lavagem do banheiro! Ao me ver toda ensopada, achei por bem tirar logo a roupa para em breve cair no chuveiro. Fazer disso logo uma diversão, feito criança dançando na chuva. E ao O cheiro do ralo..., eu fui.
Depois de litros de água parada atrás da porta, por trás do cabide , do armário suspenso, e do vaso, vi o resultado na minha conta de água este mês! Não tinha rodo que desse conta. Mas a luta continuava. E Antonio Candido e o seu texto “Direitos Humanos e Literatura”, passaram na cabeça.
Por fim, caí na água, digo, no chuveiro. E depois de tirar os lodos, manchas, opacidades dos vidros e arredores, finalmente terminei. Saí descabelada, encharcada e exausta. Enxuguei tudo, inclusive a mim mesma, com medo de uma gripe qualquer, e com essa eu piraria de medo, caí na cama de cansada. Na cabeça? Mario Vargas Llosa e “A Literatura e a vida”.
Outro dia, em estado de urgência, chamei a diarista para uma faxina. Máscaras, distanciamento e tudo, passei o dia todo a segui-la para ver o seu desempenho e a sua velocidade no trato com a limpeza do apartamento. “O Leitor Comum” de Virginia Woolf me rondava, nem comum eu conseguia ser nessas tarefas ditas básicas. E foi por isso que me animei a lavar esse bendito banheiro. Com a auxiliar, tudo parecia tão fácil. Joga a água, põe o sabão, lava, enxuga, tudo perfeito e cheiroso. Esnobou meu MOP, meu rodo mágico, e tudo mais. Num minuto amarra uma estopa no rodo, passa o pano, depois água, depois enxuga. A casa fica limpa e linda. E ao vê-la com tanta destreza a fazer tudo com maestria, pensei em como cada um tem os seus saberes. E poderes!
O meu banheiro? Ficou também um brinco, sem pérolas. Mas só eu sei o alvoroço que foi. Sem prática, sem paciência, sem objetividade. Mas me senti orgulhosa de ter conseguido. E pensei em como aquele velho ditado cabia aqui – Antes tarde do que nunca!
T. S. Eliot teria ficado orgulhoso de mim como a minha “Tradition and My Individual Talent”. Nesse momento em que eu aprendia a fazer algo tão substancial nessa vida, lavar um banheiro completo. Terminei, com Virginia Woolf, e Um Teto Todo Seu, procurando o meu lugar, não na literatura e na vida, mas na minha inabilidade em lavar um banheiro. Acho que achei!