Hoje eu peço licença para abordar uma categoria sofrida, explorada, mal-reconhecida. O seu labor não está previsto em lei trabalhista nem...

A moça da casa

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Hoje eu peço licença para abordar uma categoria sofrida, explorada, mal-reconhecida. O seu labor não está previsto em lei trabalhista nem sofre fiscalização do Ministério do Trabalho. Não conta tempo de serviço para aposentadoria. Seu tempo de carreira geralmente é limitado da infância à adolescência, que é quando chegam os hormônios e a sua atenção se volta para outros.

Calma, Dr. Virginio Benevides: não se trata de exploração do trabalho infantil! Com a leitura V. Excia. entenderá.


Toda família tradicional que se preze tem a sua Moça da Casa. Ela faz parte da cultura dos lares de famílias, e a sua origem provavelmente é latina. Trata-se de uma instituição secular, herdada por nós da cultura portuguesa.

Inicia-se com o desenvolvimento da menina, quando ela é uma criança ativa, interativa, atenta aos hábitos da casa e, portanto, muito participativa. Geralmente a menininha, pequena ainda, sente vontade de participar da vida da família, é dotada de curiosidade e de capacidade de observação. Ela sempre tem a sensação de que é muito útil à família.

Assim, agindo como Moça da Casa ela sente-se mais importante que os irmãos, principalmente os mais velhos, que em geral a deixam escanteada, tolhida mesmo, por ser menina ou por ser mais nova. Além disso, ser Moça da Casa lhe dá a sensação de desenvolvimento, de maturidade, por ela aos poucos assumir responsabilidades no lar.

Freqüentemente ela é mais dedicada ao pai ou ao avô de que à mãe ou à avó. Porém isto não significa que ela tenha maior afinidade com ele: a sua maior afinidade geralmente é com a mãe ou a avó.

A princípio ela inicia a carreira atendendo telefones, interfones e celulares. Com o tempo ela vai dando ordens do que acha que é sua atribuição. Observadora, reclama da presença do leite com Toddy do vovô no café. Do exemplar do jornal A União na porta de serviço para a leitura matinal do vovô.

À noite não pode faltar a luz de cabeceira, pois o vovô só vai dormir após ler alguma coisa. E não pode deixar de ter os seus livros e revistas sobre o criado mudo.

Na sala ela despeja as pessoas que estiverem sentadas na poltrona do vovô, pois ele quer assistir TV. Nem pode faltar ao lado da poltrona a revista A Recreativa, com um lápis de grafite 8B, para o vovô se distrair fazendo exercícios mentais, palavras cruzadas, charadas, rebus.

Com os anos, porém, a história passa a ser outra. Ela chega à adolescência recebendo banhos de hormônios, e subitamente a Moça da Casa cresce e desaparece. Os interesses passam a ser outros, e ela poderá ser substituída. Ou não.

Mas muitas vezes a Moça da Casa não se casa, incontável é o número de moças que sacrificam os seus casamentos para cuidar do pai ou da mãe idosos. Ela então continua no grupo palaciano, orbitando os pais velhos ou os avós, assumindo então total importância para a estrutura familiar.

Ela se torna fundamental para solucionar problemas, como as aposentadorias de seus pais. Leva-os para o banco ou o cinema. Leva à fisioterapia para tratar a fibromialgia e as dores das costas ou do pescoço. Leva também à Vivance para praticar pilates e desenferrujar as articulações. Leva para a consulta médica, e em casa garante que eles tomem os remédios corretamente e que estes medicamentos nunca lhes falte. Preocupa-se com o asseio e a sua segurança no lar. Questiona atitudes médicas ou de enfermagem, briga com nutricionistas cuidadoras.

Em geral a Moça da Casa não tem aposentadoria nem pensão, ela simplesmente cresce e dedica-se aos seus protegidos, compensando as suas limitações sem nenhuma remuneração, por puro amor aos seus ascendentes. E às vezes não são reconhecidas.


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Dedico esta crônica às minhas netinhas Arielle, que me foi muito devotada enquanto exerceu o cargo de Moça da Casa.

E para Amanda, que está começando a substituí-la com louvor. A elas a minha eterna gratidão.


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  1. Agradeço pela sua atenção, Piedade.
    Realmente, as relações têm, EM GERAL, a frieza que você descreve...

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  2. Apesar das mudanças comportamentais da atualidade, onde se jogam nossos idosos em "casas de repouso" para quem pode pagar, ainda existem as moças da casa, na versão moderna.Oriundo de família de 08 irmãos, "sobrou" para a mais nova assumir em definitivo a função de cuidadora da nossa matriarca (86). Todos domiciliados em outras unidades da Federação, por contingência , ela é a titular do cargo. Somos todos muitos felizes, principalmente a nossa mãe. Belo retrato do cotidiano Dr José Mário.

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