A história que narrarei resumidamente a seguir é verídica, apesar de ter tudo para ser tida como fantasiosa. Colhi-a de fonte absolutamente fidedigna, conforme mostrarei mais adiante, de modo que nenhuma dúvida pode haver a respeito. Até porque, sabemos, a vida, sempre plena de mistérios que desafiam a razão, é farta de episódios semelhantes, o que muito serve à nossa humildade diante de tudo que ultrapassa as explicações simplesmente racionais, lógicas e científicas da realidade.
Quem conhece um pouco da nossa história sabe que o senador Pinheiro Machado, José Gomes Pinheiro Machado, do Rio Grande do Sul, praticamente dominou a cena política do país no período que vai da proclamação da República até 1915, quando, na tarde do dia 8 de setembro, foi assassinado com uma punhalada nas costas, no saguão do Hotel dos Estrangeiros, à época o
Pinheiro Machado morava num palacete no Morro da Graça, na antiga Rua Guanabara, hoje com o nome do senador. Casa grande, senhorial, servida por vários empregados, entre os quais um motorista, com quem o político costumava conversar sempre que usava seus serviços ao volante. Certo dia, o senador notou que o seu companheiro de viagens estava calado e com o semblante preocupado. Perguntou-lhe então o que se passava. O empregado confessou-lhe que a esposa estava muito doente, talvez até mesmo à morte. Imediatamente, o patrão decidiu levar a mulher do motorista para sua casa, onde foi atentamente cuidada pela esposa e pelo médico pessoal do patrão, vindo a recuperar-se totalmente da enfermidade. Essa atitude benemérita do senador nunca foi esquecida por seus modestos beneficiários, tendo entrado, a partir daí e para sempre, na crônica familiar dos mesmos.
Mais de meio século se passa. Estamos agora em 1968, na capital paulista, numa das dependências do DOI-CODI, célebre centro de tortura de presos políticos durante a ditadura militar. Um sobrinho-bisneto do senador, um jovem de menos de vinte anos de idade, de nome José Antonio Pinheiro Machado, fora preso, juntamente com dezenas de outros companheiros igualmente jovens, no famoso congresso da UNE, em Ibiúna, São Paulo, e levado para aquele inferno de triste memória. Certo dia, um homem grande e forte abre a cela, mira o rosto de cada um dos detidos, e diz, apontando para o descendente do político gaúcho: "Vamos começar por você. Vem comigo!".
O carcereiro, depois de demorado silêncio, fez um ar de riso e falou: "Veja só que coincidência ... Seu bisavô salvou a vida da minha avó!". E então contou toda aquela história da mulher do motorista que foi tratada e salva pelo político assassinado em 1915. Depois disso, preencheu convenientemente o relatório de praxe, o qual resultou na posterior soltura do jovem preso, que, assim, pode retornar a Porto Alegre, aliviado e perplexo com tudo que lhe tinha acontecido na prisão.
Tudo isso está contado em detalhes no livro publicado em 2018 pelo agora escritor José Antonio Pinheiro Machado, intitulado O Senador acaba de morrer – A vida e o assassinato de um dos políticos mais importantes da história do Brasil, dado à luz pela editora L&PM, cuja leitura recomendo por todas as razões.
Impressionou-me fortemente que o gesto magnânimo e de bondade do senador gaúcho, lá pelos começos do século passado, tenha salvado a vida de seu sobrinho-bisneto cinco décadas após. Pois foi isso o que aconteceu, não tenho dúvida. O neto daquela avó salva pelo político por sua vez salvou a vida do descendente deste último, quitando assim, de forma totalmente imprevista, a velha dívida de gratidão familiar para com o antigo benfeitor. É um belo exemplo de como o bem gera o bem e de como é grande a sua força fecundante.