Os poetas sempre foram fascinados pela loucura, e muitos a sentiram na pele. Alguns inclusive, atingiram seus limites, como Sylvia Plath. O conceito de normalidade inspirou filósofos, escritores e estudiosos da área, uma definição complexa, um consenso não conquistado. “A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela, e ela ser grande, é ser louco”. (Fernando Pessoa).
A história registrou no Egito antigo, a loucura com um status diferenciado: o indivíduo teria condições de se comunicar com os deuses, estabelecendo um vínculo entre o homem e os seres supremos. Na Bíblia, foi representada pelo endemoniado, maligno, espírito imundo. O mesmo conceito observou-se na Idade Média, e os perturbados viviam nas periferias das cidades, sujeitos a zombaria e à rejeição. No Renascimento era considerada como um “saber sobre a natureza da vida”. O século XIX firmou a atitude que surgira há alguns anos, os loucos deveriam ser recolhidos (e esquecidos) nos manicômios, afastados da sociedade.
Com o tempo, o tratamento evoluiu até os dias atuais, com a luta antimanicomial, a contribuição de M Foucault, “A disciplina é um princípio de controle do discurso”; a criação importante dos Hospitais-dia e o acompanhamento ambulatorial, permitindo uma vida quase normal.
“Confiar inteiramente na razão é limitar nossas possibilidades de conhecer” (Montaigne).
O Hospital Psiquiátrico, na sua época áurea, acolhia a população carente de todo o Estado. Um espaço bucólico, extenso, com mangueiras antigas e suas grandes copas, compunha um clima humanizado para as famílias que aguardavam. A beleza externa não encontrava espelho no interior dos seus pavilhões, onde os gritos, o choro e o abandono, misturados ao odor de urina e medicamentos, falavam do sofrimento dos seus internos. Muros altos e brancos dividiam seus limites com o “mundo”.
“Não há como negar, que o muro faz parte da vida nas cidades, seja em maior ou menor número, sendo usado para proteger, segregar e isolar uma fronteira” (Tiago Mendes Filgueira).
Ali tão perto, havia uma casa, feita de amor e solidariedade. E, frequentemente alguém escapava da hospitalização. “O pássaro é livre na prisão do ar. O espírito é livre na prisão do corpo” (Carlos Drummond de Andrade).
Nessa fuga insana (ou não?), sem direção, sem orientação, sem sentido, corriam como atletas olímpicos. Quando o corpo exauria-se, esse endereço se tornava o porto seguro. O primeiro a descobrir essa possibilidade, chamava-se Sebastião: homem alto, vistoso, em torno dos cinquenta anos, com um porte altivo, apesar dos trajes rasgados e sujos. Apoiava-se no portão, até que um convite o fizesse chegar ao terraço. Lá, aceitava um café com bolo, uma oferta de banho demandava maior resistência. Sentava sempre na mesma cadeira. Os pés descalços, com fissuras profundas e calosidades, de tanto usá-los como sapatos de cromo alemão... o conteúdo intenso apagava a forma, que se tornava insignificante. Contava histórias fantásticas, de poder, de influência, de onipotência... ao lado, uma criança o escutava, sem piscar os olhos, e acompanhava o processo delirante do visitante, como se fosse um conto de contos de fadas.
“Loucos são apenas os significados não compartilhados. A loucura, não é loucura quando compartilhada” (Z. Bauman).
A segunda pessoa surgiu de maneira semelhante, e despertava cuidado e preocupação da dona da casa. Chamava-se Severino. Tinha entre vinte e oito a trinta e cinco anos, baixinho, magro, desengonçado, inquieto, ativo e falante. Usava chinelos, dos quais tinha ciúmes e não os largava por nada no mundo. Gostava de almoçar, mas, adorava as sobremesas... havia um ar infantil, de uma época que não foi vivida. “Quantas dificuldades dos pacientes decorrem do fato de que ninguém jamais os escutou inteligentemente? (D. Winnicott). Não aceitava o nome das pessoas e as batizava como queria. A partir de então, a identidade era definitiva. Assistindo o jardineiro aparar a grama, ficou encantado e manifestou o desejo de aprender o ofício. Ganhou uma tesoura de jardinagem, e com o instrumento embaixo do braço, percorria as ruas do bairro, e ganhava algum dinheiro, que exibia vaidoso. E, a criança crescia e observava, ouvia sobre seus feitos e andanças.
“Escutar é processar o que se está captando com a audição, dar a isso um significado e fazer um esforço para compreender o outro, e até se sentir no seu lugar” (Zenão de Cítio).
A terceira protegida da família, Maria, era afilhada de uma tia e adotava todas as irmãs da mesma, como madrinhas. A alegria transbordava em seu rosto, marcado por rugas profundas, apesar dos quarenta anos, um certo bigode teimava em aparecer e sombrear a boca, da qual faltavam alguns elementos dentários. Estava sempre limpa, com roupas de mangas compridas, afinal, morava “de caridade” com umas freiras no convento.
Rezava alto, e de repente, no auge da excitação, cantava e dançava “a música proibida de Zé Pelintra” (um misto de côco e xaxado), mas temia o pecado contido na letra da melodia…
“Apesar de tudo, a loucura não é assim tão feia, como muita gente julga. Há tantas loucas felizes! ” (Florbela Espanca). A maior parte do tempo, Maria observava silenciosamente as pessoas, e conversava com alguma mosca que voasse por perto, a quem chamava carinhosamente: “minha bichinha”. E, se tal inseto não escapasse por conta própria, pois ela a perseguia correndo pela casa, teria um fim pouco agradável de ser relatado.
“É preciso ter um caos dentro de si, para gerar uma estrela dançante” (Nietzsche). Ao seu lado, a criança se admirava, acompanhava a agitação maníaca.
Com o passar dos anos, essas vivências marcaram o desejo da expectadora. “A voz inconsciente é sutil, mas ela não descansa até ser ouvida” (S. Freud).
A experiência da escuta precoce, os relatos da assistência hospitalar futuramente constatada, o ver e ouvir, além do que se apresentava, dividir memórias, traumas, silêncios... levaram ao conhecimento da alma do outro, com suas fragilidades e resistências. Mesmo com todas as limitações inerentes ao processo, a cura pela palavra, a herança freudiana justificou a persistência, o trabalho e o encanto sempre renovado!
“O ser do homem não pode ser compreendido sem sua loucura, assim como não seria o ser do homem, se não trouxesse em si, a loucura como limite de sua liberdade” (Lacan).