Miguel Bezerra é vivo? Que me lembre, a última vez que o ocupei, saí de sua casa da Juarez Távora com uma braçada feliz de livros encadernados, verdadeiras reedições dignas da gratidão ou da memória devota dos próprios autores. O que ele fazia não era encadernação a ouro, a couro ou mesmo em boa percalina. Era simplesmente a gosto, sumo do talento artesão com materiais às vezes pobres que a nobreza artística, no auge da civilização do livro, tratava com aura de “divina proporção”.
Que divina proporção, esta? Passou-me a noção um impressor de linhagem clássica assimilada entre os imigrantes italianos aqui refugiados por transbordo do Recife. Chamava-se Waldemar Nicolau, aprendiz nesse povo com nome nativo. Entendia de impressão, de composição e de acabamento gráfico refinado. José Dionísio, Miguel Bezerra e Alexandre, mãos finas da seção de encadernação, devem ter aprendido muita coisa com Waldemar, rigoroso, não muito aberto e generoso em seus saberes. Também remanescia uma tradição tipográfica de refinamento nos opúsculos oficiais já evidente, entre nós, nas primeiras décadas do século XIX. A biblioteca da APL conserva uma vintena dessas verdadeiras delicadezas de arte tipográfica da nossa experiência secular.
Num instante Waldemar ensinou-me como tentar a divina proporção na titulação de um livro, na afinação do tipo, da família gráfica com a denotação do assunto, com o miolo, se lei, se discurso, se instrução ou se poesia. A arte da ilustração, não por falta de artista, e sim de mecanismos, era impraticável em províncias como a nossa. A ilustração de capa era um luxo do Rio, de São Paulo, via Garnier ou Chardon, um privilégio dos Bilac e Coelho Neto. Foi um tento o negro Lima Barreto, sem o prestígio de um Patrocínio ou um João do Rio, imprimir as Recordações do Escrivão em brochura ilustrada em prelo de Lisboa.Teve a demão de um Antonio Noronha Santos.
E por que vem isso à tona? Porque fui mexer em coisa velha e dei com Miguel Bezerra, um tiquinho de homem, tamanho de nada, na cópia de uma extensa relação dos funcionários do Departamento de Publicidade de 1958, já apagando, lida a pulso de uma lente das grossas que a filha Beloca me mandou da Normandia.
Tiquinho de nada o Miguel Bezerra, quase do tamanho dos livros que encadernava. Mas como crescia e se agigantava com o trabalho que fazia! Não com o resultado, mas com o trabalho em si. Este que tenho em mãos (já não sei se o livro ou o próprio Miguel) havia perdido a folha de apoio que precede o frontispício de um manual de Psicologia adotado em 1939 pelas escolas da “segunda enseñanza” da Argentina. Preciosíssimo para as minhas noções nessa seara pioneira de Santo Agostinho. A imaginação, a consciência do eu, o volitivo, o afetivo, coisas para as quais não tive escola.
Por mais que tenha me servido, hoje o conservo menos pelo Juan Guerrero, o mestre-autor do que pela arte de Miguel Bezerra. Feita para restaurar e proteger o livro já usado, usando morim, pano barato, deu-me uma obra de arte, um objeto de desejo tão estimado quanto um quadro de Flávio, de Tônio ou de Elpídio, que prestigiam a minha sala. Uma simples capa com o autor no alto da página, o título na linha imaginária inferior do primeiro terço e um ornato de nada terço abaixo. Mais um risquinho sob o autor e, no mais, só harmonia em preto e branco acentuada por um tipo forte e ao mesmo tempo serifado que a Psicologia não comportaria outro. Um mistério que só a arte explica. Um manual de 83 anos, uma capa já encardida de morim, e eu a me perguntar por Miguel, onde anda Miguel.
Se não está no céu está aqui.
(Do Jornal A União, edição de 21/07/21