Hoje abri um livro e dele caiu a folha de bordo que eu trouxe de Montreal. Flutuou até o chão e o gato a destruiu em segundos. Tornou-se pó. Imediatamente lembrei de Elizabeth Bishop e seu poema sobre a arte de perder.
Dei à folha destruída a mesma cerimônia de despedida destinada a tudo o mais que perdi: um pensamento de agradecimento pelos dias que tivemos. Recolhi em mim suas cores, seu formato de quase-estrela, a memória da manhã feliz em que a vi pela primeira vez.
À medida que envelheço, descubro o poético roteiro da perda, que faz parte da natureza de todas as coisas. Na roda da vida, a impermanência é marca indelével. Algo em nós, entretanto, tenta subverter a realidade, reter afetos e objetos, congelar instantes no tempo – como água a escorrer entre os dedos.
Por vezes, coisas pequenas se vão; em outras, partem preciosidades: saúde, amigos, casamentos, a vera existência, filhos, a sanidade. Nada tem garantia. Numa hora, firme na mão; na outra, bolha de sabão.
Faço treinamentos diários. Exercícios para viver tudo em plenitude, bebendo a música das horas; e treinos para deixar partir e para aprender a ir. Com graça, de corpo e de espírito, fechando a porta com delicadeza e calma.
As perdas insignificantes de todos os dias me ensinam a enfrentar as grandes. Essas ainda não domino. Elas saem da minha cena e eu abro os dedos (trêmulos) para que sigam, embora a memória de meu apego as deseje reter.
Aos poucos aprendo a abandonar as expectativas. Já não quero ser um peso sobre amigos e amados. Não mais desejo vê-los gratos ao meu carinho, aos sacrifícios que fiz. Liberto-os de me darem algo em troca. Bastam-me os dias em que houve riso e luz.
Já não afasto o rosto quando vem a bofetada de mão que julguei amiga. Calo-me agora quando algum amor se converte em adversário. Inclino-me diante dele, grata pelo aprendizado que me chega de forma inesperada.
Minha ausência de reação não se deve a preguiça, covardia ou acomodação. O movimento é outro: o dos olhos. Abro-os bem para que tudo captem, compreendam, decifrem. É bom ser espectador da vida, observar o mecanismo da mente a reescrever as cenas, reinventar o passado, apagar os gestos de amor, fixar-se em desimportâncias, abrir mão do sublime. Aprende-se no silêncio e na paciência.
Hoje deixo partirem de mim até mesmo os grandes amores. Solto-lhes a mão suavemente. No último segundo, afasto um fio de cabelo que lhes cai no rosto e os beijo com amor.
Obrigada. É preciso.
Dia chegará – quem sabe quando? – em que precisarei dar adeus definitivo a tudo. Corpo, ideias, amores. Serei lembrança nesta imensidão, um som que desaparece. Mesmo que deseje, não poderei levá-los.
Secretamente torço para que a vida seja um grande colar de pérolas unidas por um fio. Cada pérola, um tempo de existência.
Se assim for (digam que sim, deuses novos e antigos) num sábado de sol, em algum gramado verde, escutarei uma batida de coração, um ritmo familiar que atravessa as eras. Eu reconhecerei em outros olhos o mesmo brilho, um antigo jeito de rir, o cabelo cobrindo o rosto. Será a hora de começar de novo. Por um tempo curto, limitado; um tempo para ser feliz, para sonhar em ter uma casa só nossa, onde veremos o pôr do sol e todas as estrelas.
Encontraremos um novo lugar para ganhar e perder. Uma pérola recém-criada para chamar de lar.
Eu esperarei lá.