Eneias deve deixar Troia. Os Argivos invadiram a cidade, estão matando seus habitantes e destruindo-a. Heitor lhe aparece em sonho e lhe diz da impossibilidade de defesa: não é por falta de braços que a cidade está caindo, o inimigo está dentro dos muros e Troia rui desde o seu alto cume (Hostis habet muros; ruit alto a culmine Troia, verso 290). O fantasma de Heitor ainda diz a Eneias, para levar consigo as coisas sagradas de Troia – seus Penates e a deusa Vesta –, pois o herói precisará deles para fundar as novas e grandes muralhas.
Ao acordar, Eneias vê-se em meio à confusão reinante e insiste em lutar, numa tentativa inútil de evitar a queda da cidade. É preciso que a deusa Vênus, sua mãe, o arraste, literalmente, pelo braço (dextraque prehensum, verso 592) e lhe mostre que a destruição de Troia não é culpa de Helena ou de Páris, mas da inclemência dos deuses (diuom inclementia, verso 602). Para convencê-lo, a deusa mostra Juno liderando as hostes argivas, no comando das Portas Escaias; Netuno fazendo desabar, desde a base, os muros que protegem a cidade de Príamo, Palas brandindo a égide, o terrível escudo de Zeus, e o próprio deus-pai sustentando as forças inimigas.
Convencido, Eneias vai em busca do pai, Anquises, da mulher, Creúsa, e do filho, Ascânio ou Iulo, para fugir e, devendo cumprir a determinação dos Fados, buscar nas terras de Hespéria o local onde deverá fundar uma nova Troia, ainda mais gloriosa.
Esta é uma possível síntese do Livro II da Eneida, por mim denominado “A destruição de Troia”. É o início da narração de Eneias à rainha Dido, em Cartago, sobre a sua atribulada viagem e as perdas que os Fados lhe impuseram. A continuidade da narrativa do herói se dará no Livro III – As errâncias de Eneias.
Voltemos ao Livro II. Conforme lhe dissera Heitor, Eneias deverá levar consigo, na sua fuga impelida pelo destino, os deuses protetores de Troia. O problema é que Eneias, tendo-se entregado à luta contra os Argivos, está sujo de sangue e de poeira, e sem tempo de banhar-se e purificar-se para poder carregar seus deuses. Com a destruição da cidade avançando, urge que ele se vá e se salve e à sua família, para guiar todos quantos puderem ser salvos em direção ao novo destino. Em uma palavra, tocar o sagrado, estando impuro, é nefas – não é permitido pelos deuses:
Tū, gĕnĭtōr, căpĕ sācră mănū pătrĭōsquĕ pĕnātīs;
mē bēllō ē tāntō dīgrēssŭm ēt caēdĕ rĕcēntī
āttrēctārĕ nĕfās, dōnēc mē flūmĭnĕ uīuō
āblŭĕrō.
Tu, pai, pega com tua mão os objetos sagrados e os pátrios penates;
eu, saído de uma guerra recente e de tanta morte,
não me é permitido tocá-los até eu tenha, em água corrente,
me purificado. (versos 717-720)
O que fazer? Depois de seu pai, diante dos augúrios de Júpiter, ser convencido a partir, Eneias o toma nos ombros, pois Anquises está velho e doente, e é ele, Anquises, que porta o sagrado. Eneias não pode, mas o pai pode; carregando o pai, ele carrega os objetos sagrados. Está resolvido problema. Diante da urgência da situação e da impossibilidade de purificar-se, a saída é o herói conduzir quem conduz os deuses troianos.
Escrevo sobre o Livro II da Eneida para associá-lo à bela escultura, em mármore branco, datada de 1619, da autoria de Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), que se encontra na Galleria Borghese, em Roma, representando a fuga de Eneias, Anquises e Ascânio, de Troia em destruição, de acordo com o que está narrado no épico de Virgílio. O herói traz sobre os seus ombros o pai Anquises, que carrega consigo os Penates, enquanto o pequeno Ascânio, segurando, por trás, com a mão direita, o pai, traz o fogo sagrado de Vesta, na esquerda. É possível ver no olhar de Anquises, voltado para o alto, a resignação de estar cumprindo a vontade dos deuses. Do mesmo modo, o olhar de Eneias expressa a sua piedade, em trazer o pai sobre os ombros, agarrando com firmeza a sua perna. No que diz respeito a Ascânio, vê-se em seu olhar a apreensão de quem foge, confirmada pelo fato de a criança, buscando a segurança, encontrar-se atrás do pai.
Pode-se argumentar que, de acordo com a narrativa da Eneida, não é Ascânio que porta o fogo de Vesta, tendo em vista que a Anquises, conforme vimos, na tradução acima, cabe levar consigo “os objetos sagrados”. O artista tem direito a suas licenças poéticas, com o intuito de recriar e não apenas repetir. Na concepção de sua escultura, Bernini apresenta as três etapas da vida, a infância, a fase adulta e a velhice. Para entendermos isto, precisamos ver a estátua por trás. Ascânio é a infância, na sua pureza e guardando em si o fogo da vida que se transformará em vigor. Há que se considerar, ainda, a maneira como Bernini representa a cabeleira do menino: as mechas nos cabelos de Ascânio parecem suaves labaredas de fogo, numa alusão ao prodígio que ocorre – as chamas que lambem a cabeleira do jovem (lambere flamma comas, verso 684), oriundas de fogos sagrados (sanctos ignis, verso 686) –, por isto a sua incumbência, no entendimento de Bernini, de levar o fogo sagrado de Vesta. Já Anquises é o fim da vida, tendo em suas mãos os Penates, como uma forma de revelar a continuidade do pater-familias em divindade do lar, após a sua morte. Eneias, por sua vez, é o herói na força adulta e experiente, protetor do pai e do filho, protetor dos deuses e da pátria, por extensão.
Nesta maravilhosa escultura de Bernini, podemos ver este continuum, que é vida, a partir dos planos em que a obra foi realizada. Se vista por trás, conforme já dissemos, vemos os três patamares da existência que aumentam gradativamente: a pequenez de Ascânio, a grandeza de Eneias, a debilidade de Anquises, no topo da existência. Para compreendermos este continuum, que se desenha horizontalmente a nossos olhos, é necessário observarmos o detalhe da musculatura de cada um dos personagens, esculpido no mármore: a formação do corpo infante de Ascânio, com as formas arredondadas, como cabe a uma criança; as formas definidas dos rijos músculos de Eneias – braços, mãos, pernas, ventre e costas –, contrastando com a flacidez muscular de Anquises, na debilidade dos anos avançados.
Anquises é o pai que, no final da vida, cederá o seu lugar a Eneias. Este, por sua vez, como pai da pátria e depois de fundado o reino Lavínio, cederá o seu lugar a Ascânio. O jovem, já feito homem, fundará Alba Longa, de onde são provenientes Rômulo e Remo, e, por extensão, Roma. Para quem conhece a Eneida – e Bernini demonstra conhecê-la em profundidade –, aí se encontra a configuração do continuum que levará de Troia a Roma. Anquises é a Troia velha em vias de destruição; Eneias, a Troia nova, a ser construída pela força e piedade do herói; Ascânio é o vir a ser que se desdobrará na nova via aberta por Eneias, o herói escolhido pelos deuses e que, no intermezzo, protege as duas pontas: o passado e o futuro da pátria. É só ver, agora, a estátua de costas, mas com olhar partindo de cima para baixo.
Na sua genialidade, Bernini concebeu uma escultura que permite dupla leitura e, ainda que, aparentemente, trate da fuga de Eneias, ela é uma síntese perfeita da Eneida: a leitura de baixo para cima revela o curso da vida e a sua renovação; a leitura de cima para baixo, o fluxo que levará da destruição de Troia à criação de Roma.
E ainda há quem diga que as estátuas são estáticas.