Diante da resposta à pergunta de um taxista paquistanês, em Nova York, sobre quais eram os inimigos da Itália, Umberto Eco responde que os...

Precisamos realmente de um inimigo?

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Diante da resposta à pergunta de um taxista paquistanês, em Nova York, sobre quais eram os inimigos da Itália, Umberto Eco responde que os italianos não têm inimigos, o que foge à total compreensão do seu interlocutor. A partir daí, Eco constrói o instigante ensaio “Construir o inimigo”, que abre e dá título à mais recente edição de seu livro Construir o inimigo e outros escritos ocasionais (tradução de Eliane Aguiar, 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021). São quinze ensaios sobre assuntos diversos, escritos e pronunciados, a maioria em Bolonha, entre os anos de 2001 e 2010. Destes,
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apenas o sobre Victor Hugo — “Hugo, hélas! A poética do excesso” — era inédito em conferências.

Umberto Eco já inicia com uma frase para a nossa reflexão: “Ter um inimigo é importante” (p. 12). Isto nos ajuda na definição de nossa identidade, a medir nossos valores individuais e o nosso sistema de valores, diante do que formulamos como um obstáculo a ser transposto ou eliminado. Por isso mesmo, “quando o inimigo não existe, é preciso construí-lo” (p. 12). Não é que nos dobremos ao fenômeno natural que nos leva à identificação de inimigos, como uma maneira de sobrevivência, resquício, sem dúvida filogenético, pois o que está na base da sociedade moderna não é uma possível ameaça de um suposto antagonista, mas algo muito mais interessante, que é “o processo de produção de demonização do inimigo” (p. 12).

Diante do interesse descoberto, que nos move, Eco passa a criar uma tipologia do inimigo, fazendo-nos ver, de maneira simples e clara, o que não somos capazes de enxergar, por estamos envolvidos num processo turbilhonante de condicionamento, que nos afasta de um raciocínio claro e lógico, pois o mecanismo ideológico fala mais alto e obnubila qualquer tentativa de romper com esse condicionamento, aprisionando-nos às mais terríveis discriminações e preconceitos.

Vejamos como se compõe essa tipologia do inimigo.

1
“Os inimigos são diferentes de nós e se comportam segundo costumes que não são nossos.” (p. 13)

2
“Um diferente por natureza é o estrangeiro.” (p.13)
Estas duas características iniciais são, possivelmente, o ponto de que partiu o taxista paquistanês, na sua pergunta sobre quais seriam os inimigos da Itália. Eco nos lembra, então,
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que a decisão de Plínio de condenar os cristãos, em quem só via práticas virtuosas, foi o fato de que eles não reconheciam a divindade do imperador e não lhe faziam sacrifícios, motivo suficiente para que eles fossem declarados culpados, pela “obstinação em recusar uma coisa tão óbvia e natural”. Assim sendo, para se construir um inimigo, não há qualquer necessidade de que ele tenha “elementos de acusação significativos” (p. 14). Basta agir de modo diferente.

3
“O inimigo deve ser feio, pois o belo é identificado com o bom (kalokagathia), e uma das características fundamentais da beleza sempre foi aquilo que a Idade Média chamara de integritas.” (p.14)
Ao se adotar essa condição tipológica, não importa a cor, a origem nacional ou a etnia a que pertence. Urge mostrar o inimigo defeituoso, sem a integridade corpórea ou sem o que concebemos como harmonia do conjunto, pois o que “interessa aqui ainda é o modelo recorrente da criação de um inimigo”, que logo se torna um estereótipo, varando o tempo e o espaço na sua permanência. A ideologia, não importa o seu matiz, está na base da construção desse inimigo “defeituoso” e delituoso. Foi dessa maneira, afirma Eco, que “os processos stalinistas começavam por construir a imagem do inimigo, para depois convencer a vítima a reconhecer-se naquela imagem” (p.26).

4
“A construção do inimigo deve ser intensa e constante” (p. 29).
O modelo que Eco nos aponta é o apresentado por Orwell, em 1984, na figura de Emmanuel Goldstein, arqui-inimigo – porque o processo de construção do inimigo para ser perfeito tem que culminar em um ser abjeto,
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abominável e supremo, ameaçador de todas as instituições –, o inimigo do Povo, o traidor dos princípios doutrinadores do partido do Grande Irmão, a quem se atribui a origem de todos os males, não importando o quão mentiroso isto seja. O importante é que ele seja objeto de um ódio explosivo e nunca suficientemente incontido por parte de todos, o que se expressa, no livro de Orwell, durante os diários “Dois Minutos de Ódio” contra Goldstein, a que todos se expunham não necessariamente por serem obrigados a participar, mas “porque era impossível não participar” (p. 30). Não há sequer necessidade que exista realmente um Emmanuel Goldstein. É suficiente fazer a propaganda de sua abominável existência.

5
“Somos seres que necessitam de um inimigo” (p. 30)
Esse inimigo não precisa ser externo. Assim como para os italianos, conforme assinala Eco, no início do seu ensaio, o inimigo pode ser interno, muitas vezes chamado de fogo amigo: “Pisa contra Lucca, guelfos contra gibelinos, nortistas contra sulistas, fascistas contra partigiani, máfia contra Estado, governo contra magistratura” (p. 11-12).

O inimigo se torna, então, de uma importância tal que parece “impossível prescindir de um inimigo”, uma presença que “não pode ser abolida dos processos da civilização”. Essa necessidade também atinge “os homens mais afáveis e amigos da paz”, quando o inimigo assume as feições de “uma força natural ou social que nos ameaça de alguma forma”, precisando ser vencida a todo custo, como “a exploração capitalista, a poluição ambiental ou a fome no Terceiro Mundo” (p. 27), objeto de ataques virulentos mesmo dos mais pacíficos, que jamais se dão conta de sua impotência em relação a essas causas, esquecendo, por exemplo, de pequenos e reais problemas que existem ao seu redor e que podem ser combatidos com mais eficácia e menos dispêndio inútil de energia.

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Umberto Eco chega, então, à pergunta crucial: qual a atitude ética que devemos ter diante dessa “necessidade ancestral de ter inimigos”? Com certeza, responde o pensador italiano, não é fingindo não tê-los, mas tentando entendê-los, destruindo “os clichês a seu respeito, sem negar ou apagar a sua alteridade”. Atitudes, contudo, reconhece ironicamente Eco, só possíveis de encontrar nos “poetas, nos santos e traidores” (p. 27).

Entendemos a ironia de Umberto Eco, fundamentada num descrédito da espécie humana, ainda tão próxima do instintivo, muito mais do que da racionalidade. Entendemos, sobretudo, pelo fato de o seu ensaio caber como uma luva na situação atual do Brasil, onde duas facções se construíram como inimigas, num jogo escravizante de amor-ódio, tendo como alvo duas figuras nada confiáveis da nossa combalida república. Cada facção se esforça, ao máximo, para exprimir o seu amor por um e o seu ódio pelo outro, sem se dar conta de que estão escravizadas aos dois, numa atitude de condicionamento doentio que já não percebem a trama demoníaco-beatífica em que se enredaram não passar de um jogo de poder que só beneficia os que estão no comando. Nessa visão fechada, cada qual se acredita único detentor dos
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princípios de moralidade e da verdade. O culto ao inimigo nos torna incapazes de raciocinar.

No mundo inteiro também se observa um ódio crescente, dirigido a autores, usando trechos descontextualizados de suas obras, para revelar um inimigo que, de algum modo, ameaça alguém. Se no Brasil Monteiro Lobato não escapou da mutilação da própria família, no mundo, não escaparam Homero, os trágicos, Shakespeare, Cervantes, Victor Hugo... A literatura virou um espaço de justiça, de luta, de bandeiras levantadas panfletárias e incendiárias, quando não é exatamente isto que faz a literatura. O importante, no entanto, é tentar através da identificação de um possível inimigo, revisar todas as injustiças cometidas ao longo da história da humanidade. De preferência, sem abrir mão das comodidades resultantes das injustiças alegadas...

Enfim, não entendemos que o entendimento do outro, ajudando-nos a desfazer os fantasmas dos inimigos, seja coisa de poeta, de santo ou de traidores. Precisamos compreender que a relação com o outro é mais do que necessária, para que possamos sair do meramente instintivo e, com a ajuda da razão, buscar uma humanização, que perdemos e esquecemos em algum desvão da história. Isto não significa que não devemos atribuir e cobrar as responsabilidades a quem de direito. É imperioso que isto aconteça, mas dentro da concepção de civilização que ajudamos a criar. Ou reconstruímos esta concepção de responsabilidade de cada um de nós ou logo descambaremos para a barbárie, como aquelas famílias que vivem se matando há séculos, embora ninguém mais saiba o porquê de se verem como inimigas mortais. Não, decididamente, não precisamos de inimigos.

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