Os poemas de Élvio Vargas parecem recém-saídos do sono e do sonho; parecem esfregar os olhos, abri-los e bocejar, para, só então, serem tomados do susto de nascer e de adquirirem a condição de poemas. Mesmo assim, ainda conservam o cordão umbilical parcialmente atado ao mundo informe que lhes deu origem. São, em suma, jorros de um sonho onde convivem harmoniosamente o caos e a cosmogonia, ambos faces de uma só moeda,
quem sabe da moedinha perdida de que tanto fala Mario Quintana, para quem “O poema é um objeto súbito”.
Pois bem, os poemas desse “Água dos Sonhos” são objetos súbitos, objetos do surto, do susto, do transe de um poeta que põe a respirar na superfície poemas que ainda liberam resquícios da placenta e que deixam escorrer o líquido da bolsa rompida para batizar seres e coisas com o sortilégio da linguagem.
Os poemas de “Água dos Sonhos” nascem de um só fôlego, pois possuem o medo de sucumbir antes de apreender a eternidade do frêmito de vida da condição humana:
“Vem de muito longe
as vidas que vivem em mim
na cumplicidade e no pacto
sou nuvem, migalhas de sonho
e pensamento
o sono das águas
neste rio invisível do vento
Às vezes e não escassas
trago o ritmo
intuição e encantamento
Sou um estrangeiro
mascate da luz boreal
É tarde demais
me construíram assim
com este estranho tecido
de sangue, linguagem e paixão
carregado de sóis amedrontados
e luas transitivas”.
Não por acaso, as metáforas genitivas inflacionam os poemas desse livro. E se elas surgem da necessidade urgente de aproximar o irreconciliável, já sabem de antemão da dificuldade em celebrar as “núpcias dos contrários”. Mesmo assim, tentam; e tentam porque é próprio do homem sonhar o impossível. Daí a avalanche – na poesia de Élvio – de termos que empulham a cartesiana e redutora compreensão do mundo dos empedernidos cultores do ponderável: “sóis amedrontados”, “imensas luas/ duas renas ofegantes”, “asas de jacarandá”, “escamas de cedro”, “cais do olhar”, “pólen das lembranças”, “mascate da luz boreal”, “cardumes de rios”, “cristais de insônia”, enfim, termos e mais termos que, para os desprovidos de sensibilidade poética, parecem misturar alhos com bugalhos. Vou mais além: os paralelos insólitos da poesia de Élvio Vargas assentam-se na necessidade humanística de aproximar os contrários para eliminar as diferenças.
Élvio Vargas, assim como Quintana e Sérgio Faraco, é natural de Alegrete. Alegrete, ma non troppo, uma vez que a sua poesia parece surda aos fonemas da alegria que emanam do nome Alegrete. E isso por uma razão muito simples: o seu lirismo evoca “o lirismo dos bêbados/ o lirismo difícil e pungente dos bêbados/ o lirismo dos clowns de Shakespeare”. Vale dizer: lembra o seu lado “gauche”, tão bem expresso no recurso estilístico utilizado nesse fragmento do poema “Os Vagões de Schindler”:
“Trilhos, dormentes, rebites
nada mais me socorria
Meu destino estava selado
era ferro contra ferro
fornalha acesa
no calor dos medos
Trem ____________”.
Preciso dizer que a palavra Trem é o próprio Trem diante do traço que, iconograficamente, desperta no leitor a idéia de um solitário trilho sobre o qual, de modo inevitável, locomotiva, vagões e eu-lírico irão descarrilhar? Assim como esse Trem, o eu lírico da maioria dos poemas de Élvio Vargas não “anda nos trilhos”, descarrilha. É um eu lírico desaclimatado, estrangeiro, “gauche”.
Enfim, sobre Élvio Vargas eu diria o mesmo o que já disse a propósito de Mario Quintana: “(...) é um fronteiriço não por ser natural de Alegrete, mas por extrapolar os estreitos limites da geografia para conceber um mundo de magias e de sortilégios”.