Composta em 1951, a música de Luiz Gonzaga/José Fernandes anunciava a chegada do São João. Tempo de decorar a casa com bandeirolas, compra...

'Olha para o céu, meu amor'

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Composta em 1951, a música de Luiz Gonzaga/José Fernandes anunciava a chegada do São João. Tempo de decorar a casa com bandeirolas, comprar fogos de artifício e enfrentar o “banho de chuva’, que chegava em junho, para escolher o “melhor” milho nas feiras livres... na casa a mobilização de todos no preparo das comidas típicas. Ralar, peneirar com a urupema a massa mais espessa para pamonhas e com a peneira fina para canjica.

No piso cascas de milho, bacias com sabugos para a limpeza final. No fogão, um bolo se alternava com outro: de milho, de mandioca, pé de moleque, de macaxeira, grude (um tipo de bolo úmido de goma e côco), cocada de rapadura, a maior panela para as pamonhas e outra do mesmo porte para a canjica.
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A festa já começava na cozinha. E, o mais esperado, a oferta mais esperada: quem quer comer o tacho da canjica? O termo era mantido, apesar dos utensílios atualizados.

Os homens tinham suas tarefas bem definidas: descascar o milho, tirar os cabelos e cortar. E folgavam até mais tarde, quando organizavam a fogueira, sempre com a dúvida do lado certo para acendê-la.

À noite, a festa da família, muita alegria e organização dos fogos: primeiro os vulcões, depois os chuveiros e afins, por último cobrinhas, ratinhos e traques. Sobravam as estrelinhas... geralmente vinham em molhos de papel de seda de cores variadas, de baixo custo. Acumulavam-se na caixa destinada a guardar a reserva para São Pedro.

Ninguém as queria, não havia interesse e paciência para segurar uma e esperar que “soltasse as estrelinhas", à medida que o fogo as consumia. E a música acompanhava um dia intenso de emoções.

“Quando eu era pequenino de pé no chão, eu cortava papel fino prá fazer balão...
o balão de papel fino já não sobe mais o balão da ilusão levou pedra e foi ao chão”
Lamartine Babo

E agora? como será o São João de 2021? Os elementos para o ritual da festa estarão disponíveis (milho, fogos, música, enfeites...), com exceção da fogueira e reunião familiar. Bastará literalmente “colocar a mão na massa” e aproveitar a condição possível, a que nos restará.

No entanto, a disponibilidade interna não existe, as 500.000 pessoas mortas pelo COVID ocupam o pensamento continuamente. Sem planos, sem organização, sem comemoração...

“Esse é o dia. Esta é a hora, este é o momento, isto é quem somos e é tudo. Perene flui a interminável hora que nos confessamos nulos.
Fernando Pessoa

Eles são “nossos mortos”, porque temos participação na tragédia. Eles se foram, uma parte teve acesso à sedação, outros partilharam a redução ou ausência do Kit Entubação. Alguns partiram em ambulâncias ou em suas próprias casas, com paradas respiratórias súbitas.

Colegas médicos, queridos e admirados não foram poupados... pacientes de tantos anos de acompanhamento, selecionados bruscamente para essa passagem. Sabes? Os cabelos da morte são entrelaçados de flores (Mário Quintana). Alguém sabe da angústia da dispnéia? da sensação de terror que a cerca? do desespero de querer rezar, pedir socorro, negociar com a morte?

“Dentro de mim, mora um grito, de noite ele sai com suas garras...
Sylvia Plath

Essa fase antecede medidas radicais, a consciência já alterada pelo agravamento da insuficiência respiratória, a ambivalência de precisar e temer o CTI.

O céu e o inferno, apesar do purgatório estar mais próximo... o pânico e o instinto de sobrevivência.

“A morte é o lado da vida que está voltado para a direção contrária a nós, fora do alcance de nossa luz.
Rainer M. Rilke

Entre todos perdidos, vítimas do vírus e da omissão, na confiança das informações distorcidas, da onipotência da ignorância, do descuido com a proteção, consciente ou inconscientemente, dolorosamente irrecuperáveis. . . um nome com peso no próprio significado: Esperanza. Uma história de assistência e amizade, confiança e fé. Uma ligação partida, um cansaço perceptível, um pedido de ajuda, para enfrentar a fase mais crítica: a entubação.

“Que palavras que eu falo, não sejam ouvidas como prece, nem repetidas com fervor, apenas respeitadas como a única coisa, que resta a um homem inundado de sentimentos. Porque metade de mim é o que ouço, mas a outra metade é o que calo.
Oswaldo Montenegro

O filho interrompeu a ligação, para dizer que ela queria ouvir a minha voz. O que orientasse, ela aceitaria. Ainda a escutei falar: “a senhora é como uma irmã mais nova para mim”. Aceitou o procedimento ao escutar minhas palavras: “Vai dar tudo certo, ficar, ficar mais confortável, e, em poucos dias nos encontraremos para nossas conversas. Maria vai passar à frente, e nada a perturbará”.

“O que nos força a mentir, é o sentimento da impossibilidade dos outros compreenderem inteiramente a nossa ação. Mesmo a mentira mais complicada é mais simples que a verdade”.
Paul Valéry

Os dias de tormento, oscilação e complicações se alternavam, até que, ela não resistiu...

Uma mulher doce, mãe dedicada, coração imenso, não suportou a crueldade do vírus, como tantos que a antecederam e outros que irão depois... presos na caixinha de fogos, esquecidos no lugar de quase-mortos, com seus entes queridos afastados do último olhar... sem despedidas... estrelinhas que o fogo consome e que se soltam no ar, subindo, uma após outra, numa procissão de balões coloridos para a eternidade.

“Olha pr'o céu meu amor, Vê como ele está lindo Olha pr'aquele balão multicor Como no céu vai sumindo.

Seu nome era Esperanza.

Olha para o céu, meu amor.

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