“Ando sofrendo de uma ideia fixa que está me matando” - assim escreveu ele ao amigo desculpando-se pela incapacidade de se fazer presente. “Encontro-me em um estado lastimável, com nervos exaltados e incapaz de manter uma conversação com algum nexo. A profunda melancolia provoca-me alucinações e até convulsões”, complementou.
Este sofrimento se iniciou em setembro de 1827, quando a companhia de teatro Charles Kemble produziu uma série de apresentações de peças de Shakespeare no Odéon de Paris. Em uma das célebres datas registradas nos anais da dramaturgia romântica francesa, o próprio Kemble encarnou Hamlet, contracenando com a bonita atriz irlandesa Harriet Smithson no papel de Ofélia.
Na memorável noite a plateia se compôs com o que havia de mais representativo da Paris artística e literária de então, como Eugène Delacroix, Louis Boulanger, Victor Hugo, Alexandre Dumas, Alfred de Vigny, Charles Nodier, Théophile Gautier, o pianista compositor Franz Liszt, com apenas 19 anos, e os irmãos Eugène e Achille Devéria.
Foi quase unânime o destaque desta performance para a atuação de Harriet Smithson, que despertou nos membros de Movimento Romântico francês um frenesi pela obra de Shakespeare, iniciado com as apresentações de Kemble. Entre o público bem impressionado, estava o notável compositor Hector Berlioz, ícone revolucionário do romantismo francês na Música, ardoroso admirador do dramaturgo e poeta inglês. Foi exatamente nele que Harriet provocou inimagináveis e fatídicas emoções. A partir desta noite, Berlioz tornou-se vítima de uma súbita e fulminante paixão.
Tudo se transformou em angústia obsessiva na vida do músico. A imagem da atriz não mais lhe abandonou os pensamentos, reforçando, e mesmo se sobrepondo ao antigo entusiasmo pela obra de Shakespeare. Ele via-se como o malfadado príncipe da Dinamarca, a sentir o amor de Ofélia, e se fez presente em todas as demais performances em que Harriet atuou. Numa representação de Romeu e Julieta, ficou tão impactado que escreveu a um amigo: “No terceiro ato eu sentia como se uma mão de ferro apertasse meu coração, respirava com dificuldade e pressentia que estava perdido”.
Sucedeu-se um atormentado idílio que o maltratou durante seis anos. Enviou-lhe várias cartas, todas sem resposta, deprimindo-se progressivamente ao constatar que seu amor não era correspondido, e até rejeitado. Até receber veemente negativa perante uma abordagem explícita, adoece de séria melancolia, perseguido pela imagem da mulher que dizia reunir todos os seus sonhos, aspirações, e por quem se apaixonara desesperadamente.
Foi se distanciando do bom senso a ponto de imaginar que era correspondido em sua paixão louca, sem esquecê-la um dia sequer. Estava instalada a monomania, enfermidade mental caracterizada por pensamento constante em torno de um mesmo assunto progredindo para estados de perturbação emocional intensa, no caso de Berlioz, uma profunda melancolia.
A monomania foi, de fato, um padecimento psíquico que marcou parte de sua existência. Um ano antes de adoecer de amor pela atriz, a patologia já despertava interesse na comunidade médica parisiense, desde que se distinguiu da loucura propriamente dita e passou a ser tratada como um distúrbio suscetível de tratamento. Muitos casos se identificaram pelos psicoterapeutas e influenciaram até pintores como Théodore Géricault, que chegou a retratar semblantes com transtornos de idéia fixa em uma série de telas famosas conhecida como “Géricault monomaníaco”.
O caso de Berlioz foi em seguida associado ao assunto, que estava em voga desde os fatos pesquisados no Hospício de Charenton (asilo onde o Marquês de Sade findou seus dias) e se inseriu na literatura de E.T. A. Hoffmann, Madame de Duras, Balzac, Victor Hugo, inclusive em Benjamin Constant que citou a “idée fixe” em sua obra como “sentiment habituel”.
Em seu crescente desespero supõe-se que Berlioz tenha ido buscar refúgio nas experiências alucinógenas do ópio, não apenas para escapar da dolorosa e obsessiva frustração, mas para expandir a consciência, à procura de exaurir sua dor na fantasia do êxtase passional.
Não era incomum a ideia de que os estados produzidos por entorpecentes pudessem fecundar excepcionalmente a criatividade artística. O que ficou comprovado mais de um século depois na era do rock por muitos que empreenderam viagens psicodélicas com reflexos em sua arte.
Exatamente no meio do idílio desta sofrida paixão não correspondida, surge em Berlioz a inspiração para compor uma sinfonia programática na qual pudesse relatar, descrever e confidenciar todo o seu drama. Poucas obras sinfônicas foram tão legitimamente autobiográficas como a Sinfonia Fantástica, que mais pareceu uma declaração pública de amor em que ele se revelou sem receio algum.
Ficou claro que esta era a real intenção de Berlioz, pois, como tinha canais de comunicação afinados com seu respeitado trabalho de escritor, jornalista e crítico musical, conseguiu veicular na imprensa a detalhada descrição do programa, dez dias antes da estreia. Tal publicidade sugeriu a Harriet que ela seria, novamente, a protagonista de um espetáculo que sacudiu a atmosfera artística e intelectual de então.
Até esta data, nenhuma concessão ou deferência da parte dela, sequer a mínima atenção, havia sido dispensada à vítima do patológico fascínio. Manteve-se indiferente a todos os apelos do músico, por não conhecê-lo pessoalmente e talvez assustada com a insistência. Ao saber de obra tão grandiosa provavelmente a si dedicada, rendeu-se a, pelo menos, desfrutar a música sobre a qual o próprio compositor anunciava nos jornais: “vou apresentar algo impactante, nunca visto em música”. Ele nem supunha que, no futuro, outros tantos impactos marcariam a história com grandes páginas da literatura musical como a ópera Os Troianos, baseada na Eneida de Virgílio; A Danação de Fausto, lenda dramática inspirada em Goethe; A sinfonia coral Romeu e Julieta e o drama cômico Beatriz e Benedito, ambos sobre obras de Shakespeare; os poemas A Infância de Cristo e O Carnaval Romano, a sinfonia para viola e orquestra intitulada Haroldo na Itália, que fez Paganini se ajoelhar diante dele, na estreia, em frente à orquestra, e proclamá-lo publicamente como “gênio e herdeiro de Beethoven”. Sem falar no estupendo Requiem que foi apresentado suntuosamente em Les Invalides (Paris), com imensa repercussão, obra sobre a qual Berlioz se referiu como favorita: “Se eu fosse ameaçado com a destruição de todos os meus trabalhos excepto um, eu deveria implorar misericórdia para a Missa dos Mortos". Não surpreende aceitar que a ele se refiram como o compositor francês mais interpretado e cortejado fora da França.
Em 05 de dezembro de 1830, às duas da tarde, estreia a Sinfonia Fantástica, com o subtítulo Episódio da Vida de um Artista, no Conservatório de Paris. A afeição obsessiva de Berlioz continuava tão intensa que o horário incomum da avant-première foi escolhido porque, na noite daquele mesmo dia, o autor iria à Opéra-Comique assistir a mais uma atuação de Harriet.
Três dias depois, eles são enfim apresentados um ao outro. Entretanto, só após três anos, ela finalmente cede aos galanteios do ardoroso fã, já célebre pelo grande sucesso obtido, mais como musa da sinfonia do que pelo teatro. Finalmente casam-se em 1833. Infelizmente, foi uma união tendente ao fracasso que sobrexistiu a dificuldades idiomáticas e outras diferenças apenas durante sete anos.
No programa autobiográfico e na história desta peça ficam claros os sintomas da monomania em Berlioz, que teriam se agudizado ao ponto de suscitar ideias suicidas. Em um instante de loucura, ele (ou o personagem da ideia narrada) teria resolvido dar cabo à própria vida ingerindo uma grande quantidade de ópio. Não se sabe exatamente se o episódio foi vivenciado por ele sob delírio criativo, como propósito da concepção musical ou se ocorreu de fato por alucinação opiácea. A obra reflete com autenticidade o impressionante imaginário das várias experiências e estados emocionais dramáticos vividos em consequência da arrebatadora paixão.
Sob recomendação expressa de Berlioz, o público que assistiu à estreia recebeu em mãos o texto O Plano do Drama Instrumental descrito com as emoções que o inspiraram a compor a sinfonia que faria do opus 14 o mais famoso de todos. E na plateia, com o programa nas mãos, estava sua amada Harriet Smithson, razão de ser da Fantástica, posteriormente apelidada de "Mademoiselle Idée Fixe".
Eis o texto de Berlioz:
"Um jovem músico de sensibilidade doentia e imaginação ardente envenena-se com ópio em um acesso de desespero amoroso. A dose do narcótico, fraca demais para levá-lo à morte, mergulha-o em um pesado sono, acompanhado das mais estranhas visões. Enquanto dorme, sensações, sentimentos e lembranças se traduzem, no seu cérebro doentio, em pensamentos e imagens musicais. A mulher amada tornou-se para ele uma melodia, como uma ideia fixa, que ele reencontra e ouve em todo lugar”.
A Sinfonia Fantástica foi dividida em 5 partes, à semelhança da Pastoral, de Beethoven, obra à qual Berlioz se reporta além do formato. Os títulos dados aos movimentos condizem com os diversos estados d'alma experimentados pelo compositor em sua alucinada criação: Devaneios e Paixões, Um Baile, Cena nos Campos, Marcha para o Suplício e Sabá das Bruxas.
Na calma e melancólica cena de abertura, após consumido pela elevada dose do entorpecente, o jovem músico desmaia. Desolado, observa horizontes sem luz, tomado pelo desânimo de tudo que viveu em vão . Consternado, tenta reconstruir no mínimo que restou de esperança, alguma resignação. Mas só a tristeza prepondera . De repente, lembranças pontuais que guardam seu valor tentam reanimá-lo , mas a dor retorna e novamente o envolve com o familiar desengano .
Alguns instantes de paz refrigeram-lhe as emoções que a memória agora traz dos momentos em que viu Harriet pela primeira vez. Era Shakespeare, era Ofélia, era ela, em cena — o seu amor! — o amor que brotava feito luz de amanhecer. O palco, o cenário, a beleza poética do drama, tudo rodopia com certa alegria em sua imaginação doída, agora enternecida ao recordar sua incontrolável devoção, cheia de dor e prazer .
. Nuances prosseguem se alternando em estados diversos, sob os efeitos entorpecidos pela viagem empreendida com os atormentados sentimentos que o perseguiram nos últimos anos. Momentos de êxtase desfilam em contraponto às sensações de angústia e depressão, próprios de sua instabilidade emocional bipolar. Ora ressurgem jubilosos e ardentes, intuindo que valeram a pena, ora desabam nos vales profundos da dolência e do flagelo passional . Ao final, ele é socorrido por suas consoladoras convicções religiosas a lhe trazer o que conclui o andamento apropriadamente definido como Devaneios e Paixões conforto resignante .
Introduzido pelas harpas com delicados arpejos ascendentes , tudo muda com O Baile imaginado por Berlioz na onírica e plumante coreografia em que se projeta com sua amada. Dançam eles, o amor, dançam as esfuziantes recordações do que jamais aconteceu. É puro sonho a conduzi-los à plenitude que se consagra no delírio bailado . Nada mais importa, a não ser a liberdade de se mover sob os ritmos “vienenses”, em salões encantados com a ilusão inebriante de tudo o que mais desejou na vida. Uma festa de regozijo nunca dantes vivido. O clima é mantido em todo o movimento que ao final se acelera para o glorioso desfecho .
O terceiro movimento se encena na paisagem campestre, talvez, como se imagina, inspirado nos bucólicos e beethovenianos sentimentos que foram descritos pelo músico alemão em sua Sinfonia Pastoral como despertos na “chegada ao campo", " à beira de um regato", na "dança campestre", na “Tempestade" e sob a “ação de graças dos pastores, após a tempestade".
Inicia-se com dois pastores se comunicando ao som da “Ranz des Vaches” - tipo de melodia tocada por uma “trompa” de chifre para tanger gado e ovelhas . Aconchego e paz são sugeridos pelo lírico diálogo, como a conferir uma trégua às aflições do autor e uma certa confiança existencial. Mas a inquietação emerge cruel, tempestuosa, a tribular os ânimos arrefecidos . Felizmente, são ímpetos passageiros e, a exemplo da Pastoral, a tranquilidade logo volta a dominar o cenário campesino com o toque dos pastores que, pouco a pouco se distancia no horizonte percutido ao rufar dos tímpanos, a prenunciar as alucinações que se aproximam.
Seguindo o programa, após mais uma dose de ópio o deprimido artista passa a ter visões horripilantes. Cego de paixão, ele crê ter exterminado sua amada e é condenado pelo assassinato, levado ao cadafalso para a decapitação. Pior: será testemunha da própria execução. Por isto, a denominação do quarto movimento: Marcha do Suplício, que com o quinto, formam a parte macabra do repertório.
O contexto fúnebre nem de longe retira a beleza musical. Com ritmo bem marcado, ao estilo das marchas de balé de Lully e Rameau, o cortejo sinfônico é magistralmente orquestrado com riqueza de timbres e melodias de caráter solene contagiante . No final da cerimônia, ouvem-se os golpes fatais do carrasco que dá fim à sua vida desgraçada .
O último andamento é o mais exótico da obra que causou espanto e polêmica entre os críticos e amantes da Música. Nunca uma sinfonia havia inovado de maneira tão surpreendente, rompendo qualquer paradigma formal. É uma das mais revolucionárias peças musicais de todos os tempos, obra-prima do Romantismo, que chocou não somente pela ousadia da concepção estética mas pela dramaticidade criada a partir de fatos biográficos tão reais quanto imaginários.
Intitulado “Sonho de uma Noite de Sabá”, é nele que seu funeral acontece num encontro diabólico de feiticeiras com a presença de monstros e demônios, que se inicia misterioso, com risadas grotescas, grunhidos e alguns toques de sutil vulgaridade na jocosa entrada das bruxas. Em atemorizante surpresa, Harriet surge entre elas . Após uma pausa de suspense, sinos macabros anunciam o conhecido fragmento temático do Dies Iræ ("Dia de Ira"), cantochão medieval latino inspirado na tradução da Vulgata, usado na liturgia dos réquiens e funerais, cujo tema se repete variado em interlúdios que ressurgem entre as cenas entre sinos tétricos .
O autor morto se vê dentro do caixão rodeado de bruxas debochadas ciente de que entre elas, está a amada, a “ideia fixa”! O estilo de séquito fervoroso e dançante, bem compassado, caracteriza toda a pavorosa narrativa, pautada no Dies Iræ, como principal leitmotiv. Sucedem-se pequenas fugas atônitas protagonizadas pelas cordas, num belo exemplo de domínio contrapontístico , que, em dado momento chega a lembrar a Dança Macabra de Saint-Saens .
O Sabá se desenvolve e culmina num admirável caos psicodélico sinfônico , estruturado e burilado com soberba e imponente beleza. Embora possa soar como uma orgia musical selvagem e diabólica, esta obra consagra-se magnificamente como o triunfo do delírio, que só foi compreendida anos depois, e até hoje, como realmente Fantástica.