Há muitos epítetos que rondaram a carreira do insigne cineasta francês François Truffaut, morto prematuramente aos 52 anos, em 1984, devido a um câncer no cérebro. Um deles é o de que era o “cineasta da ternura”. Outro, “o cineasta da infância”. São rótulos que a imprensa e os produtores criam para vender filmes. Com efeito, Truffaut era um homem de extrema elegância — e não só cinematográfica —, espiritual inclusive. No caso de seu valiosíssimo clássico “Os incompreendidos” (“Les 400 coups”), a infância nunca fora retratada de forma tão poética, tocante e melancólica. Portanto, no que tange a essa película, vale o chavão que marcou o diretor francês.
Primeiro, vamos nos situar no tempo: Truffaut, antes de dirigir filmes, foi crítico de cinema. Defendeu com unhas e dentes o cinema de cunho autoral (o diretor é o verdadeiro criador do filme, e não o estúdio, o roteirista, a estrela, ou seja lá quem for) e a renovação da linguagem do cinema francês. Trabalhou na famigerada revista “Cahiers du cinema”, fundada pelo intelectual André Bazin. Juntamente com outros críticos da mesma revista, como Jean-Luc Godard, Claude Chabrol e Eric Rohmer, passou depois para o outro lado da tela. Visceralmente influenciado pelos “filmes B” norte-americanos, por alguns diretores franceses como Jean Vigo e Jean-Pierre Melville (do clássico absoluto “O Samurai”) e pelo mestre universal do suspense Alfred Hitchcock, Truffaut iniciou uma carreira cinematográfica de portentosos filmes autorais de muito bom gosto, com inovações narrativas e de montagem e edição de imagens.
Não é à toa que “Os incompreendidos”, de 1959, além de ser o seu primeiro longa-metragem, marca o início da “Nouvelle Vague”, o movimento cinematográfico francês que revolucionou o cinema mundial, sendo considerado por muitos o divisor de águas entre o cinema clássico e o moderno, repercutindo no cinema autoral norte-americano dos anos 70 (Scorsese, Coppola, De Palma, Spielberg), na estética de diretores europeus posteriores (Bertolucci, Wenders, Fassbinder) e até mesmo no Cinema Novo brasileiro (vide Glauber Rocha e o mantra “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”).
Truffaut teve uma infância muito difícil: jamais conheceu seu pai biológico e foi criado pelos avós paternos (seu pai adotivo e sua mãe natural o rejeitaram). Era quase inevitável que fosse um garoto-problema: seu espírito rebelde e inquieto fez dele um mau aluno, induzindo-o a cometer alguns atos de delinquência, como pequenos furtos. Em tom autobiográfico, utilizando uma linguagem marcada por um fino lirismo, o cineasta francês retrata parte de sua infância neste filme profundo e belo, repleto de cenas memoráveis, com trilha sonora inesquecível de Jean Constantin, valendo-se de técnicas inovadoras como “travellings” inusitados e demorados (vide a marcante cena final). Seu personagem principal (Antoine Doinel), tido como seu “alter ego”, é defendido em uma atuação impressionante de Jean-Pierre Léaud (ambos deram prosseguimento às agruras de Antoine em mais quatro filmes, concluindo a série com O amor em fuga, em 1979).
Com orçamento baixo, outro preceito da “Nouvelle Vague” (menos que o equivalente a cem mil dólares), “Os incompreendidos” é o filme definitivo sobre a solidão infantil, para ser visto e amado para sempre. Podemos dizer que Truffaut mergulhou de corpo e alma nele, o que só nos faz realçar um último detalhe: a obra foi dedicada a André Bazin, que assumiu uma figura paterna para Truffaut, em um momento em que ele estava à beira da marginalidade, acolhendo-o em sua revista “Cahiers du cinema”. Em entrevistas, o diretor asseverava, repetidas vezes, que o cinema salvou-lhe a vida. Certamente. Demais disso, o mestre francês, com toda a sua delicadeza e genialidade, salvou muitos de nós da irracionalidade do mundo moderno.