Dá-me um olhar que te direi quem és. Assim como o corpo é um continente, o olhar é o conteúdo. O olhar expressa o ser e o sentir de cada vivente. Reflete o sublime êxtase da vida. É uma porta entreaberta que permite conhecer a alma em toda a sua profundidade.
Os olhos com generosidade e pureza exalam os sentimentos mais nobres da grandeza e da profundidade da condição humana. Permitem, sem restrições e preconceitos, nos conceder-nos um privilégio muito além da palavra, aproximar-nos da alma humana. Edificam com emoção a cumplicidade da vida em comum. Nos olhos encontram-se as narrativas dos mais profundos e puros sentimentos em cuja gênese está o coração. Aportam-nos à sedução do afeto, assim como nos intimidam em seu silêncio. Podem gentilmente nos conduzir pela sua inocência e a beleza de vivenciar um belo jardim. E há também, por vezes, sentimentos conflitivos.
Os olhos, e suas meninas são anjos que silenciosos por serem infinitos e sedutores. Eles nos brindam com sentimentos que dispensam as palavras. Nenhuma palavra é capaz de dizer o que um simples e fugidio olhar na sua intensidade pode nos transmitir. O silêncio misterioso de um olhar pode expressar indecifráveis desejos, paixões, angústias, mágoas que, silentes, desafiam nossas limitadas percepções. Podem exalar uma linda e florida primavera que se conflita em alguns momentos com invernos rigorosos, capazes de congelar o ânimo de viver. Tudo no mais perfeito e sonoro silêncio. O olhar pode adormecer e aquietar, mas também explodir o coração.
O olhar é sempre um réu confesso, que, em silêncio, é muito mais sincero do que palavras espalhadas à toa no vento. Expressa voluntarioso, irresistível, o que vem da alma e do coração. Tristeza, ódio, desesperança, paixões demolidoras e sinceras, dimensões amorosas, todas regidas pela sinceridade que não acobertam mentiras e falsidades. Confessam com toda intensidade o que beijos, mesmo os mais apaixonados, são incapazes de verbalizar.
Nesta dolorosa hora pandêmica atual tenho me dedicado a aprofundar o querem dizer todos os olhares que nos projetam, cerceados pelas indescritíveis máscaras. Sem dificuldades, poderíamos construir uma intensa taxonomia que nos permitisse qualificar as incontáveis expressões dos olhares. São muitas, que perpetuam nossa limitada compreensão. São sempre belos, e nos fazem valorizar a riqueza do corpo humano ao encontrar neles a expressão mais sublime de suas existências.
Não resisto em querer sempre espionar, indiscretamente, o querem no silêncio e na ocultação dos rostos e de seus sorrisos, o que podem me dizer em sua sinceridade os olhares femininos. É uma apaixonante sensação, em que pese a segregação imposta às faces ocultas, sentir o que desejam dizer os sensíveis e penetrantes olhares. Emergem dos meus lampejos fotográficos, flashes, o registro de lindas e sinceras imagens de olhares tímidos, inquietos, buliçosos, tristes, e dominantemente sedutores.
Lembro-me de meu grande amigo, Humberto, que foi irresistivelmente seduzido num metrô pelo olhar de uma jovem passageira à sua frente. Ela, ao ir embora silente, ainda caminhando no cais da conexão, lhe dedicou um último olhar. Um golpe certeiro na sua alma. Dias seguidos, foi à estação de Châtelet, sempre no mesmo horário, tentar encontrá-la movido pela paixão. Inútil arrebatamento emocional a um impossível reencontro.
O seu relato apaixonado me conduziu a lembrar ao meu amigo, que, muito antes dele, o grande poeta Paul Verlaine lavrou muitos poemas sobre o olhar, e, em especial, nos metrôs parisienses, e belamente encenou: "Cerra um pouco o olhar, no teu/ Seio pousa a tua mão,/ E da alma que adormeceu/ Afasta toda intenção.// Deixemo-nos persuadir/ Pelo sopro embalador/ Que vem a teus pés franzir/ As ondas da relva em flor." Com certeza, o meu estimado amigo guardou a bela reflexão de Neruda “... para onde vá levarei o teu olhar, e para onde caminhes levarás minha dor.”
A pandemia me fez reeditar os meus incontidos e silenciosos olhares quando vivi na minha juventude em Paris. Transitando pelos metrôs parisienses e londrinos me tornei um incansável voyeur dos olhares femininos que eram sempre abortados pelos movimentos de entradas e saídas. Conheci de perto a sedução de olhares súbitos e distantes Tudo terminava como breves faíscas temporais. Paris é uma urbis tão extraordinária que tem uma rua que se chama Rue du Régard – do Olhar, tão decantada por Carlos Drummond, que lindamente a saudou: “Entre tantas ruas,/ que passam no mundo./ A Rua do Olhar, em Paris me toca. [...] Rua do Olhar./ As casas não contam./ Nem contam as pedras/ inertes no chão".
Sinto hoje que eventuais e arriscados caminhos me fazem viajar vendo muitos olhares atraentes e atentos. Com o protocolar distanciamento, passei a ter clara percepção de olhares sob uma mudez constrangedora imposta pelas máscaras que fizeram os lábios evaporarem, e olhos dominarem a cena.
O olhar de repente, pelos seus não ditos, expressam as mais lindas palavras. Os olhares na vida não se explicam, iluminam, migram incógnitos e atentos para o desconhecido. Importa nesta difícil hora, inspirar-nos e ver nos outros um olhar de esperança, e de vida que vai muito além dos sofrimentos pandêmicos.
Ao olhar a vida com os olhos de Deus, ver-se-á que esta é uma oração. No olhar há sempre uma dimensão amorosa. Deus ao criar o homem, e os animais, a todos agraciou com a delicada virtude do olhar.