Aos amigos Heloísa Arcoverde de Morais e João Leonardo Ribeiro de Morais (irmãos de Luciano)
O meu compadre e amigo Luciano Morais, menino impossível e azougado, foi cremado nesta segunda-feira, dia 14 de junho de 2021, na cidade do Recife.
Os que o conheceram apenas superficialmente tinham tudo para julgá-lo um extrovertido, um sujeito que, sem avareza, sem parcimônia, se gastava de dentro para fora. No entanto, o homem da piada pronta, da resposta precisa, disfarçava o tímido que ele sempre foi e que aparecia de corpo inteiro quando se via obrigado a cumprir um script. Nessas circunstâncias, o meu compadre não desempenhava o papel que, inadvertidamente, alguns desejavam que ele cumprisse, pois, insurrecto, insubmisso, tudo o que atravancasse o seu caminho, a sua trajetória pessoal, espontânea, enfim, tudo o que o desviasse do seu roteiro, do seu percurso, para ser outro que não ele, o meu compadre simplesmente rejeitava com a intrépida força de sua timidez e da sua personalidade: “Não, não vou por aí! / Só vou por onde me levam os meus próprios passos”.
Em mais de cinquenta anos de amizade – Luciano, inclusive, é padrinho de minha filha caçula, Maria Carolina –, jamais ouvi dele qualquer sentimento de autocomiseração. E pelo que escutei dos familiares e amigos que lhe prestaram assistência, continuou assim enquanto a “iniludível”, a “indesejada das gentes”, movia-lhe tenazmente o cerco. Levou-o no último domingo, 13 de junho, dia de Santo Antônio.
Por mais que Luciano tenha “lavrado o campo” e deixado “a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar”, o vazio de sua ausência há de se fazer sentir para todo o sempre, até mesmo pelo fato de não mais poder mudar as coisas de lugar ao seu talante e bel-prazer.
Estou a me recordar da casa de número 144, da Avenida Pedro I, de Dr. Luciano e de Dona Carminha – pais de Luciano –, que, quando adolescente, eu julgava impregnada de eternidade. Foi um núcleo de convergência e de divergências de toda uma geração, cujas discussões acaloradas sobre os festivais de música, Beatles, política, ditadura etc., eram sempre acompanhadas pelos acordes do violão de Dodó*
Apelido de João Leonardo Ribeiro de Morais, irmão de Luciano.e de Marcus Vinícius, que compunham a trilha sonora de todos nós, empenhados em cartografar os destinos do mundo movidos pela crença inabalável de que éramos sujeitos da história e donos do nosso nariz e destino. Ah, como o poema “Memória”, de Drummond, reconstitui essa época, os tempos idos e vividos: “Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração. // Nada vale o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do Não. // As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão. //Mas as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão”.
Se há pessoas ligadas à vida por tênues, frágeis e quase imperceptíveis fios, outras o são por correntes inquebrantáveis, tal o modo e a maneira como se prendem ao cotidiano, ao dia a dia, mesmo quando no derradeiro frêmito de vida sobre a terra: “Paguem o galo que eu fiquei devendo a Asclépio! ”, disse Sócrates, num último suspiro, mas ainda visceral e organicamente ligado às coisas terrenas.
Tão irrequieto e preso à vida era Luciano, que jamais o imaginei morto. E ainda hoje não o imagino, pois me custa acreditar que, a exemplo de Rosa, Tomásia, Totônio Rodrigues e outros personagens do poema bandeiriano, ele esteja dormindo profundamente. Não, absolutamente não, de alguma forma creio-o prestes a concluir o gesto interrompido, a retomar a palavra silenciada para, enfim, se recompor e dizer que fora apenas um susto que pensara pregar nos familiares e amigos. E isto é lá brincadeira que se tire, compadre Luciano! Porra!