No bairro onde habito, ainda apresentando aspecto rural apesar dos grandes edifícios erguidos em seu entorno, vez por outra aparece um carcará que nos desperta ao alvorecer. Impertinente e vadio, ao que suponho, solitário, sobrevoa à cata de alguma coisa. Em certa ocasião, numa manhã chuvosa, já me encontrando no espojeiro de minhas leituras, tentei descobrir qual espécie desta ave sobrevoava ao redor de minha casa, mas não consegui.
Noutra ocasião, ainda à mesa do café, lá fora o carcará mais uma vez anunciava a solidão dos animais que perderam sua paisagem, que catam espaço para viver e repousar. Carregamos a mesma sina de viver cada um sua agonia, num voo rasante entre nuvens nebulosas dos tempos atuais.
Vai para longe, carcará, leva a saudade que não consigo reduzir nem conter os anseios que atormentam. Caminhar pelas veredas de Serraria, com a camisa aberta ao peito, como cantou o poeta, seria o bálsamo a ungir esta nostalgia. Não é preciso permanecer tanto tempo rondando minha casa, mesmo às escondidas, porque esse seu cantar basta. O retinir do seu canto me faz lembrar as manhãs quando andava pela capoeira, solitário, narrando para as sombras invisíveis - a minha própria sombra - os devaneios atormentadores.
Antigamente no meu caminhar soturno pelas veredas de minha terra escutava o canto dessa ave que ribombava na solidão das grutas, onde também retinia a ária silenciosa do meu coração, que sufocava e ninguém ouvia.
Naquela manhã, o carcará urbano, solitário, pareceu evoluir das nossas lamentações. Seu canto intermitente, às vezes longínquo, tinia aos meus ouvidos. Olhava pela janela, por onde o vento frio penetrava na sala, mas não o avistava. Retornando aos afazeres, envolto meditações acera de passagens do Cântico dos Cânticos, ainda sem acomodar no papel os pensamentos que vagueavam pela mente, tentava afastar as antigas lembranças do passado que buliam comigo. Agarrei o lápis e comecei a rabiscar este remendo de crônica.