No bairro onde habito, ainda apresentando aspecto rural apesar dos grandes edifícios erguidos em seu entorno, vez por outra aparece um car...

O canto do carcará

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No bairro onde habito, ainda apresentando aspecto rural apesar dos grandes edifícios erguidos em seu entorno, vez por outra aparece um carcará que nos desperta ao alvorecer. Impertinente e vadio, ao que suponho, solitário, sobrevoa à cata de alguma coisa. Em certa ocasião, numa manhã chuvosa, já me encontrando no espojeiro de minhas leituras, tentei descobrir qual espécie desta ave sobrevoava ao redor de minha casa, mas não consegui.

Noutra ocasião, ainda à mesa do café, lá fora o carcará mais uma vez anunciava a solidão dos animais que perderam sua paisagem, que catam espaço para viver e repousar. Carregamos a mesma sina de viver cada um sua agonia, num voo rasante entre nuvens nebulosas dos tempos atuais.

Quando fechei o livro Sagrado das leituras diárias, peguei o lápis e as folhas de papel que estavam ao meu lado, com as anotações sobre o período quando perambulava pelas capoeiras e roçados do Tapuio de minha infância, tempo quando escutava e observava gaviões que plainavam sobre a mata espessa e capoeiras de nosso sítio. Agora o canto e seus olhares de outro gavião retornam-me às manhãs chuvosas do meu passado, como lenitivo e emplastro sobre as feridas, fazendo-me prisioneiro da saudade sem fim.

Vai para longe, carcará, leva a saudade que não consigo reduzir nem conter os anseios que atormentam. Caminhar pelas veredas de Serraria, com a camisa aberta ao peito, como cantou o poeta, seria o bálsamo a ungir esta nostalgia. Não é preciso permanecer tanto tempo rondando minha casa, mesmo às escondidas, porque esse seu cantar basta. O retinir do seu canto me faz lembrar as manhãs quando andava pela capoeira, solitário, narrando para as sombras invisíveis - a minha própria sombra - os devaneios atormentadores.

Antigamente no meu caminhar soturno pelas veredas de minha terra escutava o canto dessa ave que ribombava na solidão das grutas, onde também retinia a ária silenciosa do meu coração, que sufocava e ninguém ouvia.

Em todo o momento, fosse em dias chuvosos, nos dias com sol, nas noites enluaradas ou frias quando ocorriam os festejos juninos, seu cantar estava sempre comigo. No sítio andava pelas capoeiras a passos lentos para não espantá-lo. Ele e eu regíamos nossa solitária orquestra, cada um com sua dor.

Naquela manhã, o carcará urbano, solitário, pareceu evoluir das nossas lamentações. Seu canto intermitente, às vezes longínquo, tinia aos meus ouvidos. Olhava pela janela, por onde o vento frio penetrava na sala, mas não o avistava. Retornando aos afazeres, envolto meditações acera de passagens do Cântico dos Cânticos, ainda sem acomodar no papel os pensamentos que vagueavam pela mente, tentava afastar as antigas lembranças do passado que buliam comigo. Agarrei o lápis e comecei a rabiscar este remendo de crônica.

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