Os começos são inesquecíveis até o momento em que os esquecemos.
Eles viveram isso de forma intensa, como é dado aos amantes. A cara-metade, o amor que se completa como a lua e a estrela, as bandas que se unem num só todo. Embora a Natureza insistisse no contrário, eles acreditavam no amor romântico, na glória do eterno, aquele eterno que é mesmo o infinito, o sempiterno. Mãos e bocas entrelaçadas, o sexo como encaixe e ajuste perfeito.
Ah, tantas músicas e fotos nas redes sociais. A felicidade estava ali e existia de fato. Um amor por entre almíscares e alfazemas. Um amor de chocolates e juras ao luar. Os passeios pela praia e os risos que pareciam nunca terminar. O amor-vulcão, seus magmas derretidos derretendo os vales em chamas, em pulsões, gritos e urros na cama, pelas beiradas dos abismos do risco.
Eles estavam plenos, como manda o desejo da paixão. Aliás, tudo era desejo. Os desejos de um que eram completados pelo outro. Aquele pensar que o outro desvenda. Aquela frase que o outro completa.
O amor-ópio. Sim, aquela alienação da embriaguez dos amantes desarrazoados. O amor-cupido, um coração flechado, porém não ferido. Aqueles dois e seus dias eram contagiantes. Aquele amor que desperta inveja mesmo nos corações mais cristãos. O amor-romântico é o amor dos sonhos, do eu nunca e sim sempre nós. Um amor que se pensa na simbiose fusional das peles que se roçam, dos cabelos que se enlaçam, das línguas que serpenteiam as bocas e margens, do gozo líquido dos suores e jatos da pulsão.
Eles queriam gritar ao mundo seu amor extremo num ritual de casamento sob a luz das estrelas e o abraço dos primeiros raios de sol. Aliança e juramentos sobre o eterno. Assim longos 7 meses passaram.
Eles se amaram continuamente até que os olhares começaram a se desviar um do outro. Tudo começou com um simples creme dental apertado no meio. Sei lá de onde, uma irritação se estabeleceu sobre o melhor e talvez o mais correto modo, segundo um, de apertar o tubo de creme dental. Havia, quem sabe, um método universal de usar o creme, mas que não era tão universal assim, pois que o outro apertava sempre no meio, quando, segundo o outro, a forma correta de apertar o tubo era pelo fundo em direção à saída do creme. O que começou como uma rusga, foi quase um debate de uma tese de doutorado sobre tubos e apertos. E assim os apertos não eram já tão apertados e usuais. Nos seus corações jazia um aperto.
Nos seus olhares, havia uma sombra de um entreolhar. Um olhar para algo que nem eles mesmos sabiam o que era. Por um momento, houve um abalo. Aqueles abalos sísmicos que ninguém percebe, mas uns sentem. Suas redes sociais foram invadidas por uma série de fotos de cada um. Havia também fotos do casal, porém bem rareadas. O eu estava no comando.
Havia um nó no nós. Os desvios breves cederam lugar a olhadelas mais longas. O desejo parecia sair dos trilhos. Novos rituais foram inaugurados para encarcerar novamente o desejo. Viagens, presentes e quem sabe mudar de casa.
Os olhares começaram deslizando para objetos, coisas do cotidiano, talvez sem importância. Depois os olhares escorreram para outros. Outros olhares, outros corpos, outros encantos. Eles se amavam ainda no frisson do sexo apaixonado, mas havia um terceiro entre eles. Um terceiro imaginário, súbito, que aparecia nas fantasias e, com muito risco e culpa, no delírio de que o outro fosse um outro, um outro que se desejava nem que fosse por instantes, por um lapso do desejo, talvez.
Tudo começou a estremecer. Não apenas o tubo de creme dental todos os dias mal apertado. Para isto, dois tubos resolveriam. Mas havia mais. Toalhas molhadas na cama. Tênis soltos pela sala. Uma disputa surda de quem deveria lavar a louça. De grandes rituais de acasalamento, eles agora tinham rituais diários de conflitos. Pequenos e ridículos conflitos que geravam longas horas de discussões inócuas. Teria o amor cessado?
Decidiram ir a sessões de terapia de casal. Decidiram buscar o início do fim. Decidiram desatar os nós e retomar o nós. Quem sabe eliminar o eu, este ente tão perverso quando se trata de uma relação entre dois. Negar forçosamente a sombra do outro, deste outro que está sempre à espreita dos desejos fugidios. Fugir de vez deste demônio chamado sedução, deste mal que assola os casais como Saturno devorando seus próprios filhos.
Os velhos e comuns sintomas afloraram no casal. A tentação de vasculhar a intimidade do outro em busca de respostas. Quem sabe descobrindo quem é este maldito outro, possa-se, enfim, salvar a relação. A tentação de tocar outros corpos, de delirar mesmo entre coxas desconhecidas, morder pescoços e carnes com novos sabores, de se lambuzar, mas voltar limpinho ao aconchego do lar. Mas onde pôr a culpa? Onde pôr a agonia das ligações clandestinas?
A saída mais tranquila foi uma relação aberta. Eles aderiram a quase uma moda entre os casais descolados. O modelo propõe não só a abertura para outros, mas principalmente a liberação da culpa por desejar um outro. Incialmente a novidade, como toda novidade, causou o efeito esperado: uma tranquilidade nos conflitos.
Mas a cada ida, a cada busca, o casal se reencontrava com mais ausências. Este ir-ao-mundo satisfazia os desejos sexuais, mas abria cada vez mais a cratera do vazio. Em casa, juntinhos, o casal se abraçava, abraçando seus vazios. Não se falavam, pois se bastavam.
Ah, o amor e suas armadilhas! Um laço leve ou uma gaiola, não importa. O amor tem suas astúcias. Nossa relação com o amor é quase uma síndrome de Estocolmo. Depois de presos, até feridos, nos apaixonamos por aquele algoz. Ele tem algo que desejamos, talvez uma solução sadomasoquista, talvez o terrível abismo do que não se pode nominar.
Eles tinham coisas a compartilhar. Tinham amores que poderiam ser divididos. Mas não sabiam mesmo como fazer. O amor não tem manual de instruções.
Entreolhando-se, eles se sabiam como mortos de sede em frente ao mar. Uma água que não pode dar conta da sede. O que não tem solução, nem nunca terá. Eles descobriram que o amor é feito em pedaços, como um quebra-cabeça cujas peças se perderam. Há peças parecidas, mas falta o encaixe perfeito.
Amar é faltar-se ao outro.
É tanto um deserto, quanto um oceano. O amor é aquele riozinho leve que escorre lento, mas depois explode numa cachoeira de espumas em fúria, que depois se amansa em rio de novo. E lá no seu percurso final, se espalha em deltas de mil riachos e mangues, de modo que não se sabe nem se fazem parte de um mesmo rio.
O amor nos presenteia com a falta. Ele nos oferta a dádiva de ser no outro, a partir do outro, porém nunca ser o outro ou ser para o outro. Um dia nascemos nus e frágeis e alguém nos acolhe e nos veste. Ali se inicia a jornada do eu a partir do outro. Um dia nós nos iremos sós. Alguém talvez nos vestirá para a jornada final, desta vez sem o outro. Quando o amor nos mostra a falta, mostra também a travessia.
Atravessar nossos fantasmas através de tantos outros olhares, bocas, rasgos e tropeços. O amor ergue pontes do eu para um outro, pois é intermédio, nunca destino.
Assim eles descobriram o amor. Perceberam que o amor é como a lua. Quando minguante, se afasta como uma despedida breve. Quando nova, se esconde por entre as sombras que a ocultam como um sono profundo. Quando crescente, anuncia que a sombra se rasga quando chega a luz. Quando cheia, ilumina a noite, enche o coração dos poetas e dos amantes, desperta os loucos e magos.
Eles se viram em pedaços, se enxergaram faltando um pedaço. O amor não estava mais neles, mas entre eles. Entre seus abraços, entre outros abraços reais ou imaginários. Pois o amor a tudo permite e aceita. Amar é verbo intransitivo. Ama-se, apenas. E como as águas, flui, reflui, se encrespa e lambe o mundo, fertilizando a terra, esculpindo rochas, provocando arco-íris.
Amar, enfim, é dar vexame. Permitir-se o amar-se e também aos outros e a tudo. Amar não cabe em nada. Amar é, assim, permitir-se.