A cantora Maria Bethânia nunca foi debutante. Já nasceu gigante.
Kubi Pinheiro
Kubi Pinheiro
Caetano Veloso - Uma paixão de menina. E de quebra veio Maria Bethânia e Carcará. Tive a chance de vê-la num show dos primeiros, no Rio de Janeiro. Sentada na primeira fila, ficava com as pupilas dilatadas a ouvi-la recitando Fernando Pessoa ou a dar aquelas carreirinhas no palco. Depois a vi em mais umas duas ou três vezes por aqui.
Com os anos, minha admiração aumentou, inda mais pela sua sabedoria, sua cultura de si, sua força, quando fala, parece uma divindade que amanhã, dia 18, comemora o 75º aniversário!
E foi com essa admiração que assisti, há dois anos, ao documentário Fevereiros, com direção de Marcio Debellian, responsável por registrar a vitória da escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira em 2016, que teve um enredo homenageando a irmã de Caetano, mas não só. Além de filmar a escola e os preparativos do barracão, a produção ainda acompanhou a cantora nas festas da Nossa Senhora da Purificação, na Bahia. Fevereiros é fé e uma grande festa na celebração do sincretismo tão bem orquestrado e articulado com a espiritualidade na vida de Maria Bethânia, que transita entre a ancestralidade da herança africana e o cerimonial católico.
O filme acompanha a construção deste carnaval, desde os desenhos das primeiras alegorias, até os desfiles na avenida, e segue viagem com Maria Bethânia para o Recôncavo Baiano, participando de seu ambiente familiar, religioso e das festas da sua cidade natal, Santo Amaro, conhecendo o universo que inspirou o enredo e desvendando algumas influências do Recôncavo no surgimento do samba carioca.
Sua irmã Mabel, carregando uma frustração de nunca ter sido anjo nessas mesmas festas, dá depoimentos importantes, sobre a infância da família, D Canô, o Sr. Zeca, e a exigência para estarem em casa nos festejos de Fevereiro. E Bethânia ilumina o olhar a falar dessa data. Canta; carrega o andor de Santa Bárbara; enfeita de rosas os pedestais das imagens; conversa com Mãe Menininha; foi anjo inúmeras vezes nas escadarias dessas festas; acompanha procissões, e ouve do irmão que tinha medo do Candomblé, que é ateu , mas acredita em milagres, (frase apropriada de Jorge Amado, numa visita a Mãe Menininha de Gantois, questionado por Caetano sobre religiosidade e concepções marxistas).
Mesmo quem não é religioso, se encanta com a fé alheia. Assim foi comigo. E a mistura do religioso em Santo Amaro com a preparação da Mangueira para homenagear Betânia, ficamos em dúvida onde começa um evento sagrado e termina outro. Tudo uma mistura de credos e festas. E rituais. E fé. O carnaval é uma festa de fé e ritmos. E nos barracões isso tudo está lá: o tema, os desenhos primeiros, os signos, o samba enredo, aquela bateria que faz tremer até outras encarnações, a Ala das Baianas, e suas mulheres rodadas em êxtase e catarse, a porta-estandarte vestida de Entidade. E no desfile no dia da glória, Bethânia, fantasiada dela mesma, a mostrar quem é, e todo o seu saber de si, ou culta de si, como definiu emocionado, seu irmão Caetano. Sempre ficava terna ao ver e ouvir D. Canô, mulher que se dizia ter escolhido a alegria para viver; e que tinha essa religiosidade com sua cidade, sua casa, e seu povo. Claro que tudo isso contaminou todos os filhos. E até eu, daqui do meu ateísmo e credora dos milagres, queria viver aquela fé, naqueles corredores perplexos de gente e cantorias, daquela casa em Santo Amaro. Minha amiga Rejane Nóbrega teve esse luxo, um dia!
Até Chico Buarque, que sabemos não ter esse background sagrado, canta Noite dos Mascarados com Bethânia em silêncio e admirando seu apaixonante querido, Chico. De chorar, pois essa música, esse hino – Quem é você, diga logo se gosta de mim...,acompanha quem tem mais de 30 anos! Para não dizer mais...
Quanto à Mangueira, verde rosa, de Cartola e Nelson Cavaquinho, tremulando junto às imagens na quadra pós resultado do campeonato, e Betânia chegando rodeada de sobrinhas e autoridades carnavalescas, a terra literalmente treme. E eu, agoniada nas cadeiras do Cine Banguê, queria, com toda a urgência, estar na Sapucaí a vida toda, ter virado mulata sambista alguma vez na vida. Sim, porque tem certas experiências que, não se pode passar incólume nessa vida, sem bicar alguma gota desse gosto e dessa vivência.
Bethânia com seus olhos escuros e fortes e meigos, levemente maquiados com lápis preto, vestida de branco, dourado, ou rosa, com seus amuletos protetores, num carro alegórico, ou no terreiro, ou nas águas de Iemanjá, ou recitando poemas tantos, ou como irmã siamesa de Caetano, nos coloca literalmente em contato com o sagrado. O sagrado da Bahia de todos os Santos. Mas também com a vergonha escravidão. Com toda a religiosidade das ruas de Santo Amaro. Fiquei a pensar em algo maior – Destino. Caetano nasceu no dia do santo desse nome. Predestinado a ser quem é. Maria Betânia, filha de divindades do Candomblé, irmã caçula de mano Caetano. E Santo Amaro a purificar esses dois , e não só. A fazer uma ponte com os mares, com as oferendas daqueles que sabem do sutil e do além do visível.
A Estação de Mangueira? Se encanta no final do filme, ao som de Chico Buarque, Ou da voz daqueles que assistem ao filme, e saem inundados de luz divina e sacra. Pelo domingo? Tá de bom tamanho!
Vim pra casa atordoada. Apaixonada mais ainda por Caetano. Cantando Côncavo e Convexo. Abraçando Kubi Pinheiro, Rita Barroso, Beá e João, Thamara Duarte e Wandenberg, pessoas que, igualmente atordoadas, deixavam a sala cantarolando e remexendo o baú das lembranças, saudades, e ausências dos carnavais da vida toda. Ou dos amores divinos. Ou não.