Agora eu era herói.
E o meu cavalo só falava inglês.
Chico Buarque / Sivuca
E o meu cavalo só falava inglês.
Chico Buarque / Sivuca
Tinha eu, então, a idade dos curumins. Meu pai tentava iniciar-me nos segredos da costura como modesto aprendiz em sua oficina na Vila Abernéssia e, como recomendava a prática de então, encarregava-me de manter aceso o carvão do ferro de passar, molhar as casimiras antes que Nicanor as passasse. Algumas vezes permitia-me o dedal para alinhavar algum forro de paletó, cujo prazo para entrega exigisse temporariamente minha promoção, de aprendiz a meio oficial, o que ainda muito me distanciava de meu pai na hierarquia da profissão, uma vez que ele deixara a Alfaiataria Globo, na Rua do Ouvidor, já na condição de contramestre,
último e respeitoso degrau na escala dos profissionais da costura. Veio do Rio de Janeiro até Campos do Jordão para tratar dos pulmões. Aqui casou e estabeleceu seu negócio.
Minhas tardes eram assim: meu pai quase sempre ralhando comigo e Nicanor rindo de meu embaraço. Éramos os três a dar conta das encomendas, que em alguns meses rareavam, noutros vinham com abundância; e então, trazíamos o velho rádio de galena para que pudéssemos adentrar à noite no trabalho, sem que perdêssemos as novelas da Rádio Nacional. Nessas noites, acompanhava-nos minha mãe. Não foram poucas vezes que a voz melodiosa de Olga Nobre levou-a as lágrimas. Ela e o sentimental Nicanor.
As manhãs entregava-as sem muito entusiasmo ao Grupo Escolar. Pelejava com a tabuada e a caligrafia. Ao meu pai a preocupação era com os progressos que eu pudesse obter nas letras e no ofício. Assim, com igual rigor cobrava-me bom desempenho nesses dois afazeres. A paga pelo esforço nessas obrigações era a bagatela semanal de vinte cruzeiros, pecúnia que eu consumia nas matinês dominicais do Cine Glória ao lado de Nestorzinho, Angelino e Cecéu.
Éramos parceiros de escola e de sonhos.
Sábados não havia sem que corrêssemos à estação, esperando pela gôndola que chegava de Pindamonhangaba, pontual e rumorosa. Cecéu, o mais ansioso, mergulhava sempre seus olhos no horizonte e nos movimentos do velho Anacleto que consultava o velho patacão, a controlar o tempo e suas obrigações com a Estrada de Ferro. — Quatro e quinze! – anunciava. Depois olhava-nos com ternura, revelando cumplicidade com nossas expectativas – quatro e meia ela chega.
Chegava sempre e sempre no horário. Angelino roia as unhas.
Quem será que ela vai trazer hoje?
Logo depois despontava prateada e sacolejante apitando nos cruzamentos. Depois aportava na estação. Anacleto recolhia a encomenda do maquinista. Desembrulhava, olhava-nos com pose de arauto e anunciava quem viera nos visitar lá nos autos da Mantiqueira.
— Chegou o Tom Mix!
Era assim que chegavam todas as semanas aqueles forasteiros galantes e intrometidos: em grossos rolos de celulose.
Sempre fomos, os quatro, pontuais naquele rito semanal de oferecer hospitalidade calorosa àquele paladinos, de entregar-lhes nossos corações e tantos outros que pudessem pulsar acelerados nas barulhentas matinês do Cine Glória.
Não há ninguém de duvidar de nossa intimidade com seus feitos, sua biografias e principalmente com suas habilidades.
— Briga é com o John Wayne – desafiava Cecéu.
— É que ele nunca experimentou um murro do Buck Jones – reclamava Nestorzinho.
Eu não admitia cotação inferior ao meu paladino.
— Pode juntar os dois que não dão conta do Gary Cooper.
Tínhamos, todavia, concordância do que ia além das truculentas fronteiras da força muscular e adentrasse no mágico território da perícia. Concordávamos que pontaria era mesmo com Randolf Scott, que no laço e montaria Bob Steele era insuperável e que Allan “Rock” Lane era um porqueira, Roy Rogers era um pancudo e só prestava mesmo era para cantar. Assim inveredávamos pelos intrigantes labirintos dos defeitos e das vicissitudes. Muitos outros passaram pelo crivo impiedoso dos nossos julgamentos: Tom Tyler, Joel McCrea, Ray Carrigan, Ken Maynard, Tim McCoy, Hoot Gibson e outros tantos que fossem recolhidos naquele fim de mundo pelas mãos diligentes do velho Anacleto.
Aos domingos, inaugurávamos as manhãs com nossas fantasias memoráveis nos terrenos desocupados da Vila Ferraz, ao sopé do morro da santa Casa, até onde fossem capazes nos levar aquelas ilusões de meninos. Um quarteto de cavaleiros, aboletados em cabos de vassoura a guisa de montaria.
Assumíamos a fleuma e postura de nossos preferidos. Eu gostava mesmo é de ser o Gary Cooper, Nestorzinho se achava o Buck Jones, Cecéu era o John Wayne e Angelino o Tom Mix. Éramos todos mocinhos. Os bandidos sanguinários e os índios perversos viviam apenas em nossas alucinantes imaginações, ou se travestiam de qualquer intruso que se intrometesse em nossas contendas. Aos nossos garanhões, fogosos como os da tela, conservávamos a fidelidade de seus senhores. Só eu mesmo, assim com Gary Cooper, não adotava uma única montaria. O cavalo de Cecéu era o Duke, de Nestorzinho o Silver e de Angelino o Old Blue.
Mais do que todos, eu me achava imbatível! Gostava de esmurrar o Jack Palance. Muitas mocinhas estiveram ali comigo. Eu as protegia dos peles-vermelhas, do terrível Touro Sentado. Sabiam que índio comigo era ali oh!, no cano do meu Colt! Muitas vezes fui ferido em combate, mas Angelino, ou melhor dizendo, Tom Mix, ajeitava os ferimentos com meu cachecol e eu ficava prontinho para beijar Jennifer Holt...Até na boca; se ela quisesse, é claro. Sempre era Dona Matilde que punha fim a nossos devaneios. Chamava por Cecéu, e então, descobríamos que era hora do almoço. Depois o banho e os aprontamentos. Minha mãe reclamava graxa nos sapatos e separava-me a melhor casimira para que eu, Cecéu, Angelino e Nestorzinho nos encontrássemos defronte ao Armazém Cristal, do Seu Pina, e iniciássemos a marcha rumo ao Cine Glória.
Na portaria, sempre Simão Cireneu. Eclético. Era ele também quem pintava os letreiros coloridos e reproduzia magistralmente as cenas mais emocionantes da película. Eram figuras perfeitas em letras góticas que anunciavam o espetáculo da tarde: “Os falsários do Oeste”. À nossa chegada, sempre além do título e da gravura, desfilava sua arte de relatar contendas com as quais iríamos nos deliciar nos instantes seguintes.
— Vão ver só a surra que Bob Steele aplicou no George Chesebro. Não deu nem pro começo — e gesticulava como fosse ele o autor do nocaute.
Depois, tínhamos que dividir nossa euforia com a inquieta multidão que fazia do Cine Glória uma arena ímpar de virtudes, onde jamais pudemos presenciar uma vitória sequer do mal sobre o bem, da realidade sobre o mito, do cotidiano sobre os nossos sonhos.
Mas um dia, fez-me a vida perceber que além daquele quintal, havia bem mais do que os beijos de Jean Arthur e Jennifer Holt, do que as provocações de Jack Palance, do que o tiro certeiro do meu Colt e de nossas intrépidas cavalgadas atrás de apaches e chayenes.
Eram fartas as encomendas. Meu pai, Nicanor e eu nos entregávamos com afinco ao corte da casimira e do linho inglês. A premência dos prazos fez-me arriscar meu primeiro molde de colete e muito elogios ganhei pela exatidão do meu traçado. Ouvi orgulhoso meu pai repetir várias vezes:
— O menino tem mão. Tem mão!
Minha mãe traria o jantar e nem as novelas tiraram nosso ímpeto. Era Dr. Adhemar que estava para chegar com Dona Leonor para inaugurar mais um sanatório. Nosso estabelecimento nunca atendera gente tão importante. Até Doutor Silveira nos encomendara seu terno, e nossa modesta “Alfaiataria e Camisaria Paris” começava a ganhar fama na cidade. Meu pai, satisfeito com o andamento dos negócios, aventava a possibilidade de livrar-se da hipoteca de nossa casa, andassem as coisas como iam.
Chamado à responsabilidade não compareci à estação naquele sábado. Mas Angelino me viera até ao trabalho trazer-me a novidade.
— Chegou o Hopalong Cassidy!
Eu já ouvira falar dele. Simão Cireneu me contara. Roupa preta, cavalo branco. Bom de briga, bom de tiro. Revólver com coronha de marfim e ainda por cima não era de namorico. Era a primeira vez que Willian Bloyde ganhava nossas montanhas ostentando sua mais famosa personagem: Hopalong Cassidy. Chegava com atraso de mais de uma década, porque o Cine Glória não guardava critérios cronológicos. Aceitava de bom grado nossos heróis quando estes já tivessem entretido platéias de maior renome. Sabíamos esperar.
A noite chegou com a frenética clientela num interminável “aperta aqui”, “ajeita ali”, que a mim muito incomodava, e que meu pai com solicitude não muito costumeira, atendia demarcando novas posições para o alinhavo. Assim fomos entregando as primeiras encomendas, e quando um cabide ganhava um colete que fosse, não podíamos esconder nossa euforia. O sono atirou-me em uma velha poltrona, mas o sol já me encontrou pelejando com as tesouras, e quando minha mãe chegou para atender os reclamos matinais de nossos estômagos eu ia percebendo que o Cine Glória estava ficando cada vez mais distante. Mais ainda, quando Cecéu apareceu reclamando a pontaria de Gary Cooper para os embates daquela manhã, e meu pai com um olhar de rabicho arrefeceu minhas pretensões.
As horas impiedosas voavam, e a cada quarto passado, eu consultava Nicanor, como a lembrar meu pai pelo adiantado delas, dos meus proventos, que ele ainda não se lembrara de “acertar minhas contas” como fazia todos os domingos. Ele, indiferente às minha ansiedades, acionava os pedais. À hora dos aprontamentos, como minhas insinuações se tivessem mostrado vãs, recorri à lágrimas, num último recurso de lembrar meu algoz, que naquela tarde era Hopalong Cassidy instalando seu nome na galeria de nossos astros prediletos. Mas meu pai não entendia de cowboys como eu não entendia de hipotecas. Mas como as armas daquele forasteiro não tinham calibre para resgatar promissórias, recomendou-me a prudência que eu deixasse as lágrimas e ficasse com as agulhas.
Não fui me encontrar com Angelino, Nestorzinho e Cecéu. Era a primeira vez que meu coração experimentava a dolorosa sensação da impotência. O mundo era definitivamente maior do que meus sonhos. A hipoteca da minha casa não deixava lugar para aquelas fantasias que somente nós, eu Angelino, Nestorzinho e Cecéu podíamos compreender suas mágicas dimensões. De súbito meu pai começou a ralhar comigo, que eu não tinha responsabilidade com a vida, que se ele não contasse com o próprio filho, com quem iria contar? Disse ainda, que eu estava ficando meio aluado com aquela história de cinema, que ele estava velho e doente e que de uma hora para outra, oh!... E quem iria tomar conta dos negócios? E completou:
— Você? Com garrucha de mentira na cinta?
Terça-feira teríamos que entregar o que faltasse de encomendas. O homem ia chegar na quarta e ai se não estivesse tudo pronto! Mas eu não queria saber do Adhemar de Barros, do Jânio Quadros, do Marechal Lott, de ninguém, queria mesmo era ver o Hopalong Cassidy, e para mostrar a força de minha preferência atirei-me novamente às lágrimas e aos soluços.
Passados hoje tantos anos, não posso crer que meu pai fosse cruel àquele ponto de atirar-me ao rosto o ferro de passar. Foi coisa do momento, do medo de perder nossa casa. Deixou-me com essa cicatriz. Ele mesmo nunca se perdoou por isso. Morreu dois anos depois quando os pulmões fraquejaram de vez. Creio que o amo. Sempre o amei. Não o amasse, não estaria aqui, na “Alfaiataria e Camisaria Paris” como sempre ele desejou. Nunca e por motivo algum abro a alfaiataria aos domingos. Algumas vezes confesso que choro, por meu pai, por essa cicatriz... Mas principalmente, por lembrar que o Cine Glória não existe mais.