O fanático é alguém excessivamente aferrado a um credo, um sistema, uma ideologia. Ele não manifesta apenas uma adesão; de tal modo se compenetra daquilo em que acredita, que a priori despreza qualquer valor ou sentimento distintos dos seus.
A História registra muitos exemplos de fanatismo, a maior parte deles vinculada à ideologia e à religião. A explicação para isso é que religião e ideologia são domínios nebulosos – a primeira se abre ao transcendente, território por excelência da imaginação; a segunda enseja utópicas miragens de igualdade entre os homens. Com uma boa retórica é possível convencer as pessoas de que tal sistema político ou tal crença constituem o único caminho para a justiça social ou a salvação da alma.
Também há fanatismo no esporte, que tem a sua mística, mas nesse caso o efeito é menos danoso. Uma derrota do Flamengo não leva à estigmatização do time ou do torcedor adversário, e pouco tempo depois o ressentimento dos derrotados esmaece numa mesa de bar ou ante a expetativa da próxima rodada. Isso não se compara ao que ocorre quando o adepto de alguma religião, ou de alguma ideologia, confronta-se com quem fez uma opção diferente da sua.
Em que diferem o fanático religioso e o fanático ideológico? Ambos têm em comum não apenas a intolerância com os que não partilham dos seus credos, mas também a tendência a julgá-los como filiados ao credo oposto. Não aceitam o meio-termo – essa instância de sensatez na qual, segundo os gregos, está a virtude. Para eles, quem não milita em suas hostes fatalmente se vincula às hostes contrárias.
Esse tipo de raciocínio abre caminho para a autoindulgência e a prévia condenação do outro. É a morte da autocrítica e a entronização de mitos e dogmas. Em vão a realidade insiste em perfurar essa férrea carapaça, pois o caminho está fechado à razão.
Mas (eis a diferença) no fanático religioso a intolerância decorre da crença num Além. Essa crença, ilusória ou não, de certo modo reduz a responsabilidade do indivíduo que a nutre. É a “divindade” que o inspira e requisita. Isso lhe turva a consciência, mas o faz agir de boa-fé.
Já o fanático ideológico não acredita em ilusões metafísicas que lhe inspirem as convicções. É um pseudorracionalista, alguém que considera a hipertrofia intelectual um signo da razão.
Seu propósito é rejeitar tudo que pertence ao outro lado (mesmo bom) e acolher tudo que pertence ao seu lado (mesmo mau). Sua ética, tendenciosa, baseia-se no ressentimento. Divide o mundo entre os que pensam igual a ele e os outros, nos quais é incapaz de enxergar virtudes.
Vivemos dramaticamente essa situação no país. A divisão das pessoas em dois lados chegou a tal ponto, que vem interferindo na maneira como se posicionam quanto à pandemia que ora nos aflige. No rastro de uma teimosia delirante, chega-se a contestar sem respaldo científico o que dizem médicos e epidemiologistas. Ora, se a meta central é a vida, o que conta para nos livrar do vírus independe de os promotores da cura serem de esquerda ou de direita.
Como sou um anarquista de extração milloriana (“Todo homem é minha presa”), esquivo-me de militar em um lado ou outro e busco protestar contra os erros que há nos dois. Afinal de contas, nenhum ser humano está imune à recriminação – e sobretudo à anedota.