Abri as torneiras e deixei a água correr ao piano de Brigitte Engerer. A banheira era um luxo que nunca desfrutei em minha vida e era a pr...

Eu e o espelho

literatura paraibana reflexoes intimas interiores espelho eduardo kugler
Abri as torneiras e deixei a água correr ao piano de Brigitte Engerer. A banheira era um luxo que nunca desfrutei em minha vida e era a primeira vez que a preparava. Ainda não sabia direito como produzir aquele monte de espuma que se vê nos filmes, nem o que fazer com as pétalas de rosa vermelha, mas eu iria tentar…

Tranquei a porta e me desnudei por completo. Joguei minhas roupas num cestão como se elas fossem bolas de basquete. Mesmo a curta distância eu errei o alvo, algumas peças ficaram enroscadas no aro. Nenhuma caiu dentro. Quase todas foram parar no chão molhado e ali ficariam para que, depois do banho, eu enxugasse os pés.
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Trancafiar-se numa sala de banhos é ter a liberdade tolhida pela metade. Não havia motivos para esconder as minhas vergonhas. Eu estava só. Então, voltei para a porta e com inédita ousadia a escancarei, mostrando-me com despudor às traças e baratas, ao mesmo instante em que uma nuvem de vapor invadia o corredor do apartamento. Surrupiei de Schwarzenegger a cena insolente em que ele chegava do futuro, nu e envolto numa esfera de fumaça. Senti-me no papel do exterminador, no caso, das traças e baratas.

Pelado, com a porta aberta, passeava altaneiro daqui para acolá e por todos os espaços da residência em bravata desafiadora. Pude enfim conhecer, tardiamente, a percepção deliciosa da atmosfera que me roçava e esfregava sem resistência. Tive ainda a estranha sensação de que as roupas desde sempre fizeram parte do meu físico, da minha carne, e que agora faltava um pedaço de mim. Portanto, mesmo sozinho, desnudar-me por completo não foi uma decisão fácil como se pode pensar.

Depois de me exibir à vontade e já se habituando sem embalagem, fui com alguma naturalidade ao espelho. Enquanto ensaboava o rosto com cuidado para me barbear com um aparelho quase esquecido, havia muitos dias que andava descuidado com a minha aparência, eu desembaçava devagarzinho o espelho com o dorso de apenas dois dedos da mão. Para o meu espanto, depois de uma noite mal dormida e do cansaço do dia atribulado, vi no rastro límpido que se abria uma imagem que parecia não pertencer a mim. Estava renovado, jovial. Não me lembro de estar melhor.

Terminada a barba eu me esbofeteei satisfeito.

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