Machado de Assis fez uma crítica contundente a Eça de Queirós, acusando-o de haver plagiado Émile Zola. A acusação foi a de que O crime do...

Eça, Machado e Zola: um triângulo literário

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Machado de Assis fez uma crítica contundente a Eça de Queirós, acusando-o de haver plagiado Émile Zola. A acusação foi a de que O crime do Padre Amaro seria uma imitação de La Faute de l’Abbé Mouret, de Zola. Eça de Queirós rebate dizendo que o seu romance foi publicado primeiro e que só alguém dotado de “obtusidade córnea e má-fé cínica” poderia ver no seu romance uma imitação do romance do francês.

A bem da verdade, jamais poderia ter havido imitação ou plágio tendo em vista a primazia do romance de Eça (1874) sobre o de Zola (1875), no que diz respeito à publicação. Mas isto é o menos. O que conta mesmo é o entrecho de ambos os romances que
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são completamente diferentes, não existindo um único elo a ligá-los, nem mesmo o mais óbvio, que seria o naturalismo. O crime do padre Amaro é naturalista de carteirinha, inaugurando essa escola em Portugal, com seu anticlericalismo e denúncia da hipocrisia social. Não há qualquer traço disso em La faute de l'abbé Mouret, que se revela mais um livro lírico-trágico.

O padre Amaro é um cínico e calcula a sedução de Amélia. Começa por lhe dar os Cânticos para ler, toma a decisão de torná-la sua amante, depois de descobrir que a mãe da moça é amasiada com seu superior, o cônego Dias, seu mestre de Moral; cheio de astúcias, torna-se seu confessor. Depois de seduzida e feita sua amante, Amélia serve ao despotismo e hipocrisia de Amaro, que chega ao extremo de esbofeteá-la, após a descoberta de sua gravidez. Falhada a tentativa de casar Amélia com o antigo namorado, a solução é levá-la a uma “tecedeira de anjos”. A desgraça se abate sobre Amélia e o filho, e Amaro, em momento algum, demonstra arrependimento por seus atos. Como sacerdote e como ser humano, Amaro é o oposto do padre Mouret.

O padre Mouret é um homem puro, sacerdote por vocação, devoto da Virgem Maria, desde a sua juventude, e depois da relação com Albine, devoto de Jesus, vivendo para a vida que escolheu. Enfiado, sem reclamações, numa comunidade pobre, Les Artaud — “un pays de loups, à une lieue de toute route” (um país de lobos, a uma légua de qualquer estrada, Livro Primeiro, Capítulo I) – que ele próprio escolheu, para viver no esquecimento absoluto da carne, pedindo à Virgem para fazê-lo eunuco entre os homens (“O Marie, faites-moi eunuque parmi les hommes”, Capítulo XVII). Por outro lado, constata-se a sua humanidade com a paciência e o carinho com que Mouret cuida de uma irmã, Désirée, que, apesar dos 20 anos, pensa e vive como uma criança.

Depois que Mouret é acometido por uma febre cerebral, o seu tio, o doutor Pascal, leva-o para ser tratado na comunidade vizinha, a fértil Paradou, em casa de um velho ateu e voltairiano, Jeanbernat. O tratamento de Serge Mouret fica por conta da sobrinha do velho, Albine, jovem pura e inocente de 16 anos. É após o seu restabelecimento, que coincide com a primavera e cuja cura total se dá no verão, que Serge e Albine se descobrem apaixonados e no sítio paradisíaco do Paradou. Todo o Livro Segundo de La faute de l’abbé Mouret é um idílio amoroso envolvendo Serge e Albine, que vão se descobrindo e se amando com naturalidade e inocência. O amor floresce em ambos, como as rosas do jardim de Albine — “ne sachant point se baiser aux lèvres, cherchant sur les joues” (não sabendo ainda se beijar nos lábios, procurando nas faces, Livro Segundo, Capítulo VIII). Era o amor antes do sexo, como bem o diz Zola (“C'était l’amour avant le sexe”, Capítulo X).

Eles descobrem o amor carnal, ainda que casto e inocente, sob a misteriosa árvore do amor, como se fossem Adão e Eva redivivos. Diante do amor acontecido, cheio de pureza, o padre retoma a consciência de seu sacerdócio e retorna para Les Artaud.
Albine se mata, entre as flores colhidas no jardim e no bosque próximos a sua casa, deixando, feliz, sufocar-se pelo seu perfume. O padre Mouret, mesmo tocado diante da morte de Albine, sabe que o pecado cometido contra a carne e contra Deus, não o torna responsável pela morte da moça. Não houve cálculo, não houve sedução, apenas a pureza dos que se amam e a renúncia, por escolha e ditada pela fé.

Machado parece não ter lido os dois romances, o de Zola e o de Eça. Se os leu, nada entendeu deles ou pelo menos nada entendeu que Amaro cometeu um crime, premeditado, inclusive, contra Deus e contra uma moça indefesa, no caso Amélia. Já Mouret cometeu um pecado aos olhos de Deus, com a quebra de seu voto de castidade. Trata-se, contudo, de um pecado que pode ser perdoado, primeiro pela condição da sua doença, no momento em que desabrocha o seu amor com Albine. Depois, pelo seu arrependimento e nova entrega à vida sacerdotal. O título La Faute de l’Abbé Mouret não dá, em momento algum, margem ao entendimento de “faute” como crime. O termo pode ser traduzido por “falta”, “erro”, “pecado”, jamais, no caso específico, por “crime”. Particularmente, prefiro a tradução como O pecado do padre Mouret, tendo em vista que o seu erro diz respeito, apenas, a um desvio do seu compromisso de sacerdote, em relação à castidade, ainda que ditado pela ausência de consciência doutrinária.

Para que possamos observar essa concepção de pecado, chamo a atenção para uma cena maravilhosamente criada por Zola, no final da segunda parte do romance. Depois do amor com Albine, Serge Mouret e a moça descobrem que estão nus; ao mesmo tempo, Mouret percebe o muro que separa o Paradou dos Artaud, onde há um grande buraco que fora preenchido pela moça e agora estava novamente a descoberto. A moça faz de tudo para que ele não olhe em direção a sua vida anterior. É inútil. Serge Mouret não só olha, mas se recorda de tudo o que fazia.
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De modo a compor a cena, aparece um frade, que sempre defende a sua ideia de religião com agressividade e violência, até mesmo a violência verbal e física, se assim for necessário – “l'ordure à la bouche contre le péché” (a sujeira na boca contra o pecado, Livro Primeiro, Capítulo V). Este frade é o frei Archangias, que expulsa Mouret do Paradou, apontando-lhe, inflamado, os Artaud, local para onde ele deve voltar. É nada mais nada menos do que um misto da percepção do pecado por Adão e Eva, quando se dão conta de sua nudez, com a cena da expulsão de ambos do Paraíso com os arcanjos guardando a entrada do Éden com suas espadas de fogo. O nome do frade, Archangias, não deixa dúvidas sobre essa alusão. Do mesmo modo, Paradou lembra Paradis (paraíso, em francês) e Albine é a brancura que denota a pureza infantil. A diferença é que Zola inverte a proposição que se encontra no Gênesis: o Paradou é onde o pecado se encontra; Albine é a serpente, cuja cauda se esconde nas mechas dos seus cabelos; Les Artaud é a remissão do padre Mouret, para onde ele deve ir sozinho:

“Serge, invinciblement, marchait vers là brèche. Quand frère Archangias, d’un geste brutal, l’eut tiré hors du Paradou, Albine, glissée à terre, les mains follement tendues vers son amour qui s’en allait, se releva, la gorge brisée de sanglots. Elle s’enfuit, elle disparut au milieu des arbres, dont elle battait les troncs de ses cheveus dénoués” (Livre Deuxième, Cahpître XVII).
“Serge, invencivelmente, andava em direção à brecha. Quando frei Archangias, com um gesto brutal, puxou-o para fora do Paradou, Albine, jogada ao chão, com as mãos loucamente estendidas para seu amor, que se ia, levantou-se, a garganta rompida de soluços. Ela fugiu, desapareceu no meio das árvores, em cujos troncos ela batia seus cabelos desalinhados.”

É possível que Machado tenha se deixado levar pelos títulos. É possível que tenha lido apenas o romance de Eça de Queirós e feito uma dedução errada. É possível, ainda, que tenha sido só birra intelectual entre escritores, entre artistas, estes seres cujos egos são sempre maiores que o universo. Qualquer que tenha sido a causa da sua acusação a Eça de Queirós – “obtusidade córnea” ou pura “má-fé cínica” – o autor de Brás Cubas pôs-se numa situação indesejável, sem ter como justificar uma afirmação feita, a meu ver, de modo aleatório e insustentável. O que é comum entre egos inflados e os partidários do “não li e não gostei”.

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  1. Parabéns Milton Marques Junior..ótima apreciação em breves comparativos para ilustrar uma flagrante dissociação de plágio.Egos são terriveis!!!
    Paulo Roberto Rocha

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    1. Gratíssimo pela sua leitura e comentário, Paulo Roberto Rocha! Grande abraço!

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  2. Muito bom, mestre. Confirma-se a frase do filme Quanto Mais Quente, Melhor: Ninguém é perfeito". No meu primeiro romance, Israel Rêmora, faço com que meu protagonista se case com Maga, a personagem que deixara o protagonista de O Jogo da Amarelinha em Paris, sem lhe dizer pra onde ia. Virginius da Gama e Mello disse, num artigo, que eu plagiara Cortázar. Depois, entendendo a jogada, desculpou-se. Até hoje os Estados Unidos não aceitam Santos Dumont como pai da aviação, o que é bem pior.

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  3. Obrigado, Solha!

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