Joe Gardner quer ser pianista famoso de jazz. Ele sente que a música é a sua vida, mas só se contentará se puder ser aclamado como grande intérprete. Quando surge a sua grande chance – tocar no quarteto da famosa jazzista Dorothea Williams –, Joe sofre um acidente. Em lugar de se encaminhar para o Além, porque ainda apegado à existência terrena, Joe tenta fugir e cai na Pré-Vida ou Escola Espiritual, onde, confundido com um sueco ganhador do Nobel, ele vai ser mentor das jovens almas que vão encarnar. Joe é escolhido como mentor da alminha 22, que há séculos se desvia e recusa encarnar, apesar da excelência dos mentores que teve – Copérnico, Jung, Ghandi, Madre Teresa de Calcutá, Einstein, Orwell, Mohamed Ali. Nenhum conseguiu fazê-la descobrir a sua missão como espírito a ser encarnado.
Joe tenta isto na Pré-Vida, onde as almas aprendem o que serão e o que farão, mas nada consegue. Só quando os dois caem na terra e, acidentalmente, Joe encarna num gato e a alma 22 no corpo de Joe, é que as peripécias dessa dupla improvável fazem 22 descobrir que, contrariamente ao que os Jerry’s – nome mais fácil que os conselheiros produzidos pela combinação de todos os campos quânticos do universo assumem, no mundo espiritual – a vida, mais do que uma missão tem um propósito. A alminha 22 descobre este propósito na beleza da natureza, numa asa de borboleta; no amor da mãe de Joe pelo filho, na paixão pela música que envolve o pianista.
Com a troca das personalidades, Joe consegue o que tanto desejara: ser um pianista de jazz aclamado. Mas a vida não se abre em brilho feérico como ele esperava. Ele retorna, então, ao mundo espiritual para salvar 22 e fazê-la, enfim encarnar. Com isto, ele ganha outra oportunidade de viver no mesmo corpo e na mesma vida. Os Jerry’s, driblando a burocracia encarnada no implacável contador quântico de almas, Terry, compreendem que a existência cósmica está além de uma conta de chegada e de saída; está além de uma missão. A almas precisam de um propósito também e este propósito é viver e inspirar a vida.
Fama, dinheiro, sucesso podem até fazer parte da vida, mas o essencial é que a sua vida seja vivida, de maneira a inspirar os demais a também viver. Ao descobrir isso, Joe, que não via sentido na vida de professor de música, em escola pública, passa a reconhecer que, sendo a música a sua vida, o mais importante é que isso que o inspira também inspire as demais pessoas, como o jovem Curley, que só ia à escola por causa das suas aulas, e se torna baterista do quarteto de Dorothea Williams; como a jovem Connie, sua aluna trombonista que, querendo desistir da música, segue em frente, ou como a alminha 22, que descobre a beleza de simplesmente viver.
A vida é bela, é o maior dom que o cosmos jamais ganhou. Só quem não a vive é que não sabe o que ela é. E não precisa de requintes, luxos ou refinamentos. Viver em paz e tendo em mente o propósito de fazer bem o que lhe coube como missão é o suficiente. A sintonia com a sua missão é também um dos propósitos de cada espírito, porque é daí que surge o sentimento de εὐδαμονία, a felicidade de que fala Platão, quando sentimos que agimos para o bem. Só os infelizes e em dessintonia com o mundo material e espiritual é que passam a vida reclamando do que fazem, ou melhor, do que não fazem, porque estão presos num condicionamento deletério, sem forças para quebrá-lo.
Estamos falando do filme Soul (EUA, 2020). Uma animação perfeita em seus traços e genial no seu conteúdo. Peço perdão aos cinéfilos e aos louvores que estendem aos grandes mestres da arte cinematográfica, mas a dupla de diretor e roteirista, Pete Docter e Kemp Powers faz um filme raro, sensível, comovente, engraçado, irônico, que agrada a crianças, pelas peripécias, mas que é direcionado aos adultos, ainda que muitos não compreendam a lição que nele vem estampada. A vida tem propósito? Sim, tem um grande propósito: viver, viver plenamente, as coisas boas e as coisas ruins, exultar com os momentos bons, aprender com as dificuldades e adversidades, inspirar pessoas, ensinar com as ações e fazer a vida seguir em frente em um continuum, movida pela energia cósmica e quântica que nos compõe. Afinal, somos almas, literalmente, inspiradas em corpos, com o propósito de evoluir, a partir das várias missões que devemos desempenhar ao longo de nossas encarnações.
Soul é um SOS inteligente e bem-humorado para que todos pensemos em salvar nossas almas, o que equivale dizer salvar a nós-próprios.