“Onde aprender a odiar para não morrer de amor?”
Lá está ela! Veste um casaco marrom sobre um vestido bege, e calça mocassins cor de terra. Os cabelos, ainda que curtos e meio engordurados, esvoaçam ao vento da tarde. Uns fiapos de luz, que se coam pelo sobrecéu de folhas e galhos, deitam uns dourados intermitentes no rosto da mulher. Um rosto fino e ossudo, de maçãs salientes, um sulco profundo entre as sobrancelhas arqueadas. A boca, quase uma cicatriz.
A mulher cisma, e os olhos amendoados se amendoam um pouco mais. Busca alguma coisa. Mas, o que quer que busque lhe parece de difícil alcance. Em alguns momentos ela própria não sabe direito o que busca, como alguém que acaba de se acordar no espanto do sonho perdido. Além do mais, é primavera. Florada de acácias e ipês. É primavera de novo, apesar da mulher e da sua busca. Apesar de ser tão outono dentro dela. Aqui fora tudo é vida, a mais pura vida. Tudo, o mais humilde amor. Por que não se abandona à primavera? Gostaria de lhe perguntar agora que se afasta em direção a não sei onde, inclinada para a frente, os ombros derreados, como se andasse amarrada a grilhetas, arrastando nos pés o peso de um mundo condenado.
Caminha sem firmeza, pisando devagar. Não tem pressa. Ninguém a espera. De quando em quando, para e se vira, alongando o olhar para trás. O olhar de floresta virgem que um dia encantou o homem que não a ama. Que não a ama mais. Que talvez nunca a tenha amado. Ele próprio confessou-lhe o desamor. A princípio, as palavras não fizeram sentido para a mulher. O quê? O homem repetiu a dureza da incompreensão, a voz alterada de impaciência. Não era de desperdiçar palavras. A surpresa da confissão desestabilizou-a. Uma pressão no corpo, de cima a baixo, parecia parti-la ao meio, como se um imenso pássaro abrisse as asas entre as suas costelas, expandindo-as entre o peito e o ventre, tatalando-as numa aflição de ave prisioneira.
Naquele momento, seu único desejo fora gritar, gritar com todas as forças, e esbofeteá-lo, e meter-lhe de volta pela boca as palavras que acabara de ouvir, e chutá-lo, e mordê-lo, e amaldiçoá-lo por fim. Mas não fez nada. Nem disse nada. Tampouco disse alguma coisa passado o instante. O que dizer? Qualquer palavra soaria inadequada. E inútil. Concentrou-se no silêncio. O silêncio a salvara uma vez.
Nele, amava a pele morena, o cheiro morno e meio salgado, os ombros largos, o brilho animal nos olhos, o tom confortante da voz. Especialmente, o jeito reservado e meio distraído de ser. Julgava conhecê-lo tão bem. Talvez por isso o amasse sem sobressaltos, distraidamente, quase esquecida da sua presença. Agora que se fora, a imagem do homem crescera de forma desmedida. Aonde quer que fosse, para onde quer que olhasse, lá estava ele, abraçando-a, tateando sua cabeça, enredando os dedos em seus cabelos, e lhe beijando as pálpebras, a ponta do nariz. Como desentrelaçar a sua vida da vida dele? Como se despregar do visgo daquela intimidade? Como cerrar a porta larga do amor, por onde os dias entravam suaves e previsíveis? Pois tinham estado na vida um do outro como o céu acima de suas cabeças, ora claro e ensolarado, ora pejado de nuvens escuras. Mas sempre ali. E pensar que agora tudo ficara para trás! E pensar que não havia o que fazer quanto a isso!
A vida, um barco em correnteza. Sem remos.
Maldito homem! Se ao menos houvesse morrido, não teria que aprender a odiá-lo. Conhecia a morte, que visitara a sua casa quando ela era ainda uma garota. Com a partida repentina da mãe, entupira-se de silêncio e aninhara-se nos livros. O pai a conduzira a um médico, e ele lhe assegurara que a filha, dotada de um perfeito sentido de equilíbrio e prazer de viver, não era motivo para preocupações. Sim, ela se recorda. Mesmo na orfandade, não se sentia à deriva. Não se sentia carecente de amor. A vida era amor por toda parte e a toda hora, rebuçado de puxa-puxa, pirulito de açúcar oferecido à sua porta com cantiga de chamamento, vem, menina, vem se lambuzar, a vida doce, doce.
Segue em frente, e para baixo, por uma alameda estreita ladeada de jenipapeiros, de onde escorre, por entre o rendilhado das copas, o canto de pássaros que a mulher não vê. O mundo matizado em verde. Estaca diante de uma lixeira gigante, e o odor a atinge em cheio. Balança o corpo para a frente e para trás, numa espécie de transe. De vez em quando move os lábios, em oração ou em fala consigo mesma. A mulher cisma, e os olhos amendoados se amendoam um pouco mais. O desamor fermenta como o lixo. O desprezo é matéria de decomposição. Se quisesse, poderia agora mesmo se meter na lixeira, assim não precisaria continuar buscando algo que não conhece. Quem a impediria de chafurdar em sobras de alimentos, papéis sanitários, absorventes e preservativos encharcados de dejetos humanos, refugos de toda espécie? Quem se importaria com um bicho enjeitado, faminto, ferido, o focinho imundo de dor?
No céu, nuvens cor de pedra começam a se desmanchar. A mulher desveste o casaco marrom, segura-o sobre a cabeça e apressa o passo. Atravessa a pontezinha de tábuas ligeiramente abauladas, que tremem sob os seus pés com um breve ruído, como se a ponte suspirasse. Abriga-se sob o beiral de uma casa em ruínas. Numa casa, o ódio seria o porão. Gelado e sombrio, atulhado de coisas inservíveis e cobertas por uma camada de pó, insetos presos na seda labiríntica das aranhas. Oh, Deus! O ódio seria a morte?
O vento enverga os galhos dos araçazeiros, levanta o vestido da mulher, sacode a janela às suas costas. Uma das folhas desaba inteira para a escuridão da casa. O coração da mulher bate com força. Arqueja, como se algo lhe tirasse o fôlego. Reconhece o amor em seu corpo. Pode tocá-lo. É brando e incandescente. O ódio, não. O ódio é um muro de pedras. Oh, Deus! Por que as coisas do mundo apodrecem e morrem? Por que tudo que existe se desmantela e se corrompe, e o amor, não? O amor empalidece numa lua e ressurge resplandecente na outra. O amor se despedaça e sai por aí, em sangue vivo, cheirando a encarnado, cintilando quente, incendiando o mundo. O amor tomba no lamaçal e, emporcalhado, volta à superfície, erguendo-se altivo, no triunfo de ser amor. Ainda, e sempre, amor.
A madeira putrefata da folha da janela jaz desamparada sobre o chão de poeira. A mulher espreita as sombras do interior da casa. Quem disse que o ódio vive nas profundezas mais escuras do amor? Não! Mais fácil morrer do que encontrá-lo!
De longe lhe chega a troada do trânsito, buzinadas, sirenes, carros de propaganda. Em algum lugar além do arvoredo, uma caçamba em marcha à ré ringe como um animal sendo sacrificado. Mais próximo, uma motocicleta passa trovejando. O mundo não dá conta das pessoas que partem. O mundo não dá conta de tragédias pessoais. O mundo segue adiante, frenético, sonoro, pejado de vida.
De repente, o som de uma canção que conhece bem. Ah! A canção que fala de manhãs morenas, e luas claras nas varandas, e jardins de sonho, e cirandas. A canção que fala de um adeus. Lágrimas inundam os olhos da mulher. Por um instante, o mundo se enche d’água. Lágrima é amor escorrendo pelo rosto, metendo-se pelos cantos da boca. A chuva, amor encharcando a terra. O riacho sob a ponte de tábuas, amor em correnteza na direção única da imensidão de Deus. Águas rasas e profundas, doces e salgadas, fétidas e imaculadas, tudo amor, amor, amor, a acolher e a afagar. Tão fácil deixar-se afundar. E afogar-se.
No céu, um súbito arco-íris. A mulher torna a vestir o casaco marrom e retorna ao passeio. A terra molhada cheira ao jardim da sua infância. O jardim das borboletas que tanto amava. Esvoaçavam entre os arbustos, ziguezagueando, pousando no ar, nos troncos fulvos dos cajueiros, nas folhas arroxeadas das mangueiras, as asas estriadas de cor e luz. Sentia-se uma delas, livre, delicada, graciosa. E tão inocente da própria fragilidade.
O que resta a uma borboleta despedaçada por uma mão cruel?
Detém-se diante de um pequeno lago, a superfície levemente enrugada pelo vento. Marrecos e patos deslizam sobre o espelho d’água. Pedalinhos, ancorados sob um bambuzal, aguardam namorados que não virão, agora que a tarde descamba, o céu tingido de um azul aguado. Às margens, um casal de gansos espaneja a brancura da plumagem. Aos pés da mulher, florezinhas azuis, miosótis talvez, curvam-se, tremulam, como se boiassem sobre as ondas de um mar invisível. Tudo de uma pureza insuportável. Os olhos da mulher ardem. O murmurinho do vento nas folhas das cássias rosas a faz estremecer. Encolhe-se como se não usasse um casaco sobre o vestido, como se não calçasse mocassins. Como uma mulher nua e descalça.
O chão vacila sob os seus pés. Dá um passo em falso. O lago cambaleia. Cambaleiam os patos, marrecos e gansos, os pedalinhos, o bambuzal, as florezinhas, as cássias rosas. O céu se dissolve devagar. O mundo, uma trôpega aquarela. Um dique se rompe dentro de si. Tenta se mexer. O sangue pulsa com força na nuca, boca, ouvidos, por trás dos olhos. Uma pata de elefante repousa sobre o peito, e o coração se contrai, como se algo lutasse ferozmente para se manter ali. Mal consegue respirar. Onde se esconderia o ódio, o monstro de um olho só, o monstro de carne tão triste?Numa jaula atrás do sol? Num pântano cingido por um céu de corvos? Onde, onde? Como alcançá-lo sem se perder de si mesma?
Esforça-se por manter os olhos abertos, mas algo a empurra suavemente para um espaço de leveza, como se o corpo, despregado da cabeça, encolhesse e alçasse voo, uma pluma embalada por um vento primaveril.
(Da antologia “Feliz aniversário, Clarice”, organizada por Hugo Almeida — Editora Autêntica, 2020)