Entre tantas outras coisas, impressionou-me, no romance “O Jogo da Amarelinha” (“Rayuela”) , de Júlio Cortázar, o problema de seu personagem Horácio Oliveira:
“el sentimento de no estar del todo”,
que deu nome para algo estranho que eu também vivia.
Num ensaio posterior a respeito, Cortázar diz se sentir “siempre un poco más a la izquierda o más al fondo del lugar donde se debería estar”.
Exatamente.
E ele abre esse texto dizendo:
- Siempre seré como un niño para tantas cosas, pero uno de esos niños que desde el comienzo llevan consigo al adulto.
Bate com a memória de duas cenas de minha infância:
quando eu tinha cinco ou seis anos, tive um problema de otite bastante sério e meu pai me levou a um especialista de São Paulo. Como ele não costumava andar de mão dada com os filhos, ao correr atrás das largas passadas dele, numa calçada entupida de gente, da capital, de repente não o vi mais. Parei, deduzi que ele dobrara alguma esquina e eu, não, mas que , ao perceber que estava só, ele me procuraria ... e foi o que aconteceu.
Por essa mesma época, fui pegar um balão que caía no meio da nossa rua, à noite, em frente à nossa casa, tropecei em alguma coisa, nessa carreira, desabei com dois meninos maiores em cima de mim e, quando me levantei, vi um osso de meu braço direito de fora, no cotovelo, em meio ao sangue. Escoltaram-me de volta à minha casa, minha mãe desmaiou quando me viu, e sempre que revejo a lâmpada acesa do Guernica de Picasso, lembro-me de que me prenderam uma tala ao braço, eu de pé em cima da mesa da sala, a luz acesa perto de meu rosto, eu... “siempre un poco más a la isquierda o más al fondo del lugar donde deveria estar”, até que chegou um “carro de praça” pra me levar à Santa Casa, onde me doparam com clorofórmio... e me apaguei de vez... , sem nada dizer, sem chorar, espectador de tudo, acordando já engessado.
Trinta anos depois, em Assunção, Paraguai, entrei no Panteão de Solano López, e estava lendo uma das placas sobre a guerra em que o país fora trucidado pelo Brasil, Argentina e Uruguai, eu com as mãos para trás, com o boné, quando ouvi passadas militares, voltei-me e vi o soldado marchando em passo de ganso, em minha direção, a baioneta em riste. Foi como se assistisse a um filme. Até que, com o superior dando gritos em guarani, o homem estacou em posição de sentido, deu meia volta e se foi. Com o que continuei a ler as letras metálicas em relevo.
Publiquei reportagem com nome de “Paraguay, que se lê Paraguaje” e, não muito depois, outra, com o título de “Necrotério”. Nessa, contei que entrevistara o “abridor de cadáveres” de João Pessoa e que, ao chegar, depois, ao antigo IML, diante do Cemitério da Boa Sentença, vi que o profissional já estava com luvas de plástico pra recomeçar sua rotina, perguntei “O que tem aí?” “Um pedreiro: morreu sob o desabamento de um muro”. “Posso ver você trabalhando?” “Só se o diretor permitir. Vá ver o corpo, enquanto falo que há um jornalista querendo audiência”. Meu coração quase me salta do peito, quando entrei na sala sinistra. Mas ... ao ver o corpo nu, naquela mesa estreita , de concreto, em forma de calha ( pra escoamento do sangue ), o mal-estar desapareceu. Vi os buracos na cabeça do homem... sem qualquer emoção... e isso me fez lembrar. mais uma vez, “del sentimiento”.
Não chorei quando me ligaram dizendo que minha mãe morrera. Não chorei ao chegar ao velório de meu pai. Nem ao assistir à morte de meu irmão. Nem quando acompanhei o corpo do filho ao crematório. Nem quando fui ao velório de uma de minhas irmãs. Como se tudo fosse irreal.
Quando fui chamado às pressas, porque Kaplan, amigo de longa data, de quem eu fora parceiro na “Cantata pra Alagamar” e no musical “Burgueses ou Meliantes?” estava muito mal, no Samaritano, dei com ele na maca, máscara transparente para a respiração, intensos olhos azuis cravados nos meus:
- Solha, vou morrer!
- Eu também, Kaplan.
- Vou morrer HOJE! – e foi levado pelo maqueiro, na última vez que o vi vivo. Fascinou-me vê-lo dizer aquilo... sem drama. Tanto quanto outro grande amigo, o Dr. Atêncio Bezerra Wanderley, do qual tive um minuto pra me despedir, no Prontocor, antes que ele fosse levado pro Beneficência Portuguesa, de São Paulo:
- Solha: sou médico. Não escapo dessa. Vou de avião, volto de caixão.
Foi o que aconteceu.
Ainda trabalhava no banco, quando sofri vários ataques de trombo-embolia pulmonar , diagnosticada como gases. Viajei a Brasília no dia seguinte e, lá, pela quarta ou quinta vez, senti a punhalada nas costas e fui ao médico da Cassi, que me pediu uma chapa de raios-X, olhou-a e me disse que me sentasse.
- Por que?
- Porque vou lhe dar uma péssima notícia.
- OK, pode dizer.
- Você está com uma caverna enorme no pulmão direito e se tiver outra rebordosa antes de se medicar, pode morrer.
- OK. Vamos ao remédio.
- Você reage assim?
- E o que posso fazer?
Quando era subgerente da agência do BB em Pombal, o gerente soube que um matador fora preso em Icó, quando viajava pra lá pra me matar e me disse pra fazer a bagagem e me mandar, que providenciaria minha transferência.
- Não precisa. O cara tá preso.
- Mas do jeito que pagaram a ele, pagam a outro.
- Comprei um 38.
Curioso que essa "coisa" não ocorreu nas vezes em que morri no cinema. Tiveram de ir apanhar minha losartana potássica para que fizesse a última cena, em que Irandhir Santos e Sebastião Formiga me matavam, em O Som ao Redor, minha pressão lá pro alto. Quanto me despedia da filha, Dira Paes, em Lua Cambará, tive de ser acudido por uma enfermeira, pois me senti - realmente - muito mal. E em Taperoá, quando vivi uma cena em que, no papel de pai do Padre Ibiapina, no filme Eu Sou o Servo, do Eliézer Rolim, era fuzilado, tive repuxões – que nunca tivera antes - no rosto e, depois dos tiros, uma crise de choro na frente de todo mundo. E a cena sequer foi aproveitada.
Por que essa absurda diferença de reações? Talvez porque, nesses três casos, no universo paralelo da ficção, a mente me removesse para “un poco menos a la izquierda o menos al fondo del lugar donde debería estar”.