Passar do choro para o riso em pouco tempo demonstra que emoções presumivelmente antagônicas podem estar bem mais próximas do que supomos. Algumas pessoas experimentam sentimentos diversos com admirável maleabilidade. Ou seriam mesmo parecidas a alegria e a tristeza?...
O ódio e o amor, segundo é dito por quem estuda e observa os impulsos sensoriais humanos, também guardariam alguma semelhança. O vínculo criado entre pessoas que se amam seria tão forte e devastador quanto entre as que se odeiam.
O Taoísmo prega a complementaridade antagônica entre todos os opostos. Frio e calor, claro e escuro, silêncio e barulho constituem efeitos unidos pela mesma essência, suavemente dosados entre um extremo e outro. Ou seja, uma comprida barra de metal pode estar quente em uma ponta e fria na outra, com a mudança de temperatura ocorrendo gradativamente ao longo de seu dorso.
No campo das sensações, a alegria se mescla à tristeza facilmente. Choramos em ambas. O olhar extasiado tanto brilha com lágrimas como sob entusiasmada e transbordante felicidade. Quantos espetáculos de arte nos contagiam de emoção e mesmo criados sobre o mais dolorido tema ou enredo promovem-nos sensações entremeadas de deslumbre e nostalgia?... Quantas músicas, poesias, romances, filmes, pinturas, causam-nos arrepios e embalam-nos em sonhos amalgamados de choro e riso, luz e sombra?...
É tênue o limiar entre o júbilo e a angústia quando um frêmito comovido trepida em nosso interior, arrebatando-nos a estados que as confundem. Quando o êxtase eleva-nos à plenitude catártica, capaz de unir sentimentos dos mais variados tipos e origem, no assombroso fenômeno do existir. E não sabemos mais onde estamos, quem somos, quando ocorre a total dissolução do ego, seja em tormento amargurado ou no encantamento absolutamente cosmogônico.
Estes são estados de consciência que se expandem a ponto de não mais sentirmos incompatibilidade entre a vida e a morte, intuindo-as como partes integrantes do mesmo espetáculo existencial.
A arte é plenamente capaz de conciliar sentimentos opostos e promover enlevo ainda mais sublime perante a Música, ao consubstanciar o trágico, o mágico, o drama, a paixão, sob a aura da criação divina que tudo abrange e permeia.
Um dos exemplos da fusão de estados emocionais adversos em harmonia transcendental nasceu de uma peça chamada “Kuolema” (morte), de autoria do escritor e dramaturgo finlandês Arvid Järnefelt, que estreou no Teatro Nacional da Finlândia, em Helsink, 1903.
O músico Jean Sibelius, conterrâneo, amigo e cunhado do autor, pioneiro em composições para o teatro fínico, foi especialmente convidado para musicar este drama. Sua colaboração à dramaturgia começou quando ele ainda era jovem, compondo para o melodrama, “A Ninfa da Floresta” (Skogsrået), em texto do escritor Viktor Rydberg, membro da Academia Sueca, e com sua cantata “A “Origem do Fogo” (Tulen synty), para contracenar com episódios da mitologia finlandesa, Kalevala.
“Kuolema”, título original que significa morte, veio a ser renomeada posteriormente pelo autor como “Valsa Triste”, opus 44. Mesmo sugerindo tema fúnebre, a música dedicada ao primeiro ato da peça teatral exprime comovente beleza e encadeia ânimos que oscilam entre a vida e o ocaso com fascinante harmonia.
No programa da performance, Sibelius escreveu descrição para a Valsa Triste em plena sintonia com o enredo envolvendo previamente a plateia no universo a ser encenado:
É noite. O filho observa a mãe doente na cama ao lado e adormece de puro cansaço. Aos poucos, uma luz avermelhada se difunde pelo quarto e ouve-se o som de música distante. O brilho da luz se intensifica até que os acordes de uma melodia em ritmo de valsa ecoam ao longe. A mãe que estava adormecida acorda, levanta-se da cama e, em sua longa vestimenta branca, tal como um vestido de baile, começa a se mover, diáfana e lentamente, para lá e para cá. Acena com as mãos, no ritmo da valsa, e olha para o alto como se estivesse convocando uma multidão de entidades invisíveis. Estranhos casais visionários surgem girando e desfilando em atmosfera sobrenatural.
Ela se mistura com os dançarinos e esforça-se para que eles a fitem, mas os sombrios convidados evitam seu olhar, o que a faz perder as forças e voltar para a cama, exausta, quando a música quase silencia, mantendo apenas o ritmo. A seguir, ela reage e decide reunir todas as suas forças para entrar na dança outra vez, com ainda mais energia. Os dançarinos se aproximam girando ao seu redor em ritmo louco e selvagem. A estranha alegria atinge o clímax, quando ouve-se uma batida na porta, que se escancara. A mãe solta um grito desesperado e os convidados espectrais desaparecem furtivamente, enquanto a música se finda calmamente. “É a morte em seu limiar” - arremata Sibelius.
Tal narrativa se irmana à concepção melódica com beleza contagiante. A valsa que a anima se inicia suave como descreve a cena, com o tema concentrado nos violinos, cellos, baixos, e o compasso ternário marcado pelas violas.
Ainda que pareça soar distante, a envolvente formosura do tema encanta logo de início. E logo se percebe que a suavidade não permite que a tristeza embutida na melodia se sobressaia acima da envolvente sonoridade. As violas latejam nostálgicas, mas é realmente a beleza o que emana do contexto introdutório , que transcorre leve, em macios e aveludados afagos d'alma.
Após as duas primeiras exposições temáticas, que descreve a cena do filho contemplando a mãe enferma, uma seção se estende ritmada sustentada pela música quase em surdina, num pequeno interlúdio , anunciando o despertar da protagonista. Um certo suspense precede os instantes de alegria quando ela imediatamente se ergue para integrar a coreografia dos dançarinos com surpreendente vigor.
E tudo rodopia em eloquente colorido com a entrada do segundo tema, repetido pela flauta em instantes de pura felicidade, justamente o momento em que a mãe se levanta para dançar esfuziantemente. A paisagem esmorece vagarosamente refletindo a falta de forças para continuar, quando ela volta a se deitar, esgotada.
Novamente contagiada pela magia musical, não demora para o segundo despertar, desta vez com movimentos que se aceleram freneticamente até culminar com a orquestra em longo tutti conclusivo, para findar-se tenuamente até desaparecer, morrendo delicadamente.
Embora haja sido criada com propósito dramatúrgico e perfil incidental, a Valsa Triste expressa outros contextos em que a tristeza pode se imiscuir de diversidade emocional que se alterna mediante o que a música produz em cada ouvinte.
Esta e outras célebres páginas da literatura musical possuem extraordinária capacidade de modular os sentimentos além das tonalidades, como ondas a gravitar no ego, pronto a se libertar dos limites que restringem a felicidade, quando a compreensão e a sabedoria escasseiam. É quando todas as valsas deixam de ser tristes...