Um dia desses, eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tenho tido tempo de chorar.
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade
Esses tempos de recolhimento deixam-me mal e mau. Ficam se digladiando o advérbio e o adjetivo para ver quem mais me afeta, quem mais me traz transtornos. É briga sem vencedor, fadada a um empate magrinho, sem gols, sem boas emoções, mas que nos deixa a alma pequenina e o coração mutilado.
Mal estou, conforme enunciei acima, porque a alma está diminuída. Nem para escrever tenho disposição ou o menor lampejo. Não dá para imaginar a luta que travei para compor essas “mal traçadas linhas”. Que sufoco! As palavras não me chegavam, e quando apareciam não se encaixavam, eram frias e pobres de significado.
Ah, meus amigos, minhas amigas, quando o coração se apequena, a alma padece. Cadê um gesto, menor que seja, de benquerença, de afeto? Parece que ficamos cegos a essas luzes do espírito. Como fôssemos um caramujo, nos recolhemos e deixamos escondido o que de melhor teríamos para esses momentos: o abraço lhano, o sorriso amigo, as palavras confortantes. Eu, pelo menos, estou assim, sem a menor disposição para renovar aqueles vínculos de amizade e afeto. Quieto, recolhido, esperando tempos melhores. Pedindo que minha alma receba boas águas para se revigorar, se purificar, como as primeiras chuvas do inverno sertanejo, que aparece toda exibida, trazendo esperança e fartura. Que essa chuva benfazeja, chegue breve e venha me lavar por dentro. Ainda me resta essa esperança.
E mau (agora o adjetivo) porque estou irascível, sem paciência, soltando os cachorros em quem não merece essa minha ira descabida. Nada além disso. Ainda bem. Mas creio não ser eu a única vítima dessas idiossincrasias. Há outros; aliás, muitos outros. Eu só ando um pouco além da conta. Aos que andei magoando nesses quatorze meses de confinamento, minhas escusas públicas e sinceras.
Então àqueles que se dão ao trabalho de decifrar esses meus rabiscos, permitam-me um desabafo.
Quantas coisas a que não dávamos muita atenção e que não tê-las conosco nos deixam um imenso vazio. Onde está aquela criatura que passava depois do almoço pela minha rua, acordando-me da sesta preguiçosa, quando anunciava seu pregão: “Bassora, bassorara, bassoooooora”?. Reclamava, hoje sinto falta. Terá ele escapado à pandemia? E o vendedor de gás? Este corria as ruas numa picape distribuindo aos nossos ouvidos uma musiquinha irritante antes de anunciar: “Olha a promoção do gás, é setenta reais, aproveitem!”. Ele desapareceu e o gás já não é mais esse preço.
Eita vontade de ir à praia, de admirar aquelas esculturas morenas, receber os bafejos das brisas de sudeste que sopram nessas latitudes. E pescar? As tralhas estão em desuso num cantinho da garagem esperando que eu lhes dê serventia. Estão lá, dando abrigo às teias de pequeninas aranhas, vorazes caçadoras de muriçocas. Que falta me faz ter os pés descalços na areia, a cervejinha suada com os amigos, a boca lambuzada do caldo do caranguejo ao coco. Mesmo com a mulher reclamando: “vai sujar a camisa, parece um porco”. Até dessas reclamações sinto falta.
Os sábados lá na Livraria do Luiz, ouvindo mentiras, isso não tinha preço, tão bom que era. Ninguém mais mentiroso do que um escritor. Assim não fosse, como escreveriam uma obra de ficção? Eu confesso, sou mais mentiroso do que escritor. No primeiro caso sou bem melhor do que no segundo. Mas que sinto falta dessa gente, eu sinto. E isso não é mentira!
Enfim, não tenho no sangue nenhum traço genético de Robson Crusoé, aquele personagem de Daniel Defoe, um náufrago resiliente que passou 28 anos numa ilha tendo apenas a companhia de um nativo que ele apelidou de Sexta-feira. Eu tenho aqui a mulher, uma filha e um cachorro, os (ou as) muito pacientes comigo e estou quase explodindo. Claro que algumas vezes minha paciência entra em erupção. É o meu lado mau aflorando. Passa. Importante é que essa minha segunda face, tenha seus limites. Não ultrapassa determinadas fronteiras.
Tudo isso que disse é um retrato em preto em branco a que se reduziu minha vida. Vou suportando minhas tristezas.
Claro que há gente se aproveitando de tudo isso para tirar vantagem, se enriquecer ao preço de muitas vidas. Não são deles que estou falando. Estou falando de mim, para o meu leitor, para minha leitora, não para essas criaturas de espíritos menores.
Temos direito às nossas tristezas. Vai sendo difícil suportar. Sempre temos alguém próximo que se foi. Claro que está complicado, daí meu desabafo. Mas que quando o Sol der novamente sua graça e nossos dias voltarem a ser azuis, que nossas almas estejam limpas, e prontas para um recomeço. Que seja assim.
Esses escritos não podem ser chamados de crônica, são apenas um amontoado de palavras, um desabafo. Minha alma está pequena. Coisa que nem duas doses de vacina puderam evitar.