Conheci Rita Lee nos Mutantes. Ando meio desligado me pegou e nunca mais me des-conectei dessa turma. Mas quando li sua autobiografia (Globolivros, 2016), reconheci que não acompanhei sua carreira musical. Curti muitos discos, CDs, até assisti ao show Babilônia no Rio de Janeiro e literalmente fui lá — na Babilônia de todas as tribos do Circo voador. Cantei e dancei Ovelha Negra, Lança Perfume, Pagu, Miss Brasil 2000, 2001, Panis et Circenses, Doce Vampiro, Mania de Você, Baila comigo, Caso Sério, Nem Luxo nem Lixo, Atlântida, Tudo Vira Bosta, Reza.
Até hoje adoro o seu CD Bossa'N'Beatles e achei hilária a sua irreverência de comentário, quando Yoko Ono não autorizou uma música, pois, segundo Rita, a Srª Lennon deve ter traduzido ao pé da letra o título "Te Amo pra Xuxu!" para "I Love You for Cucumber!"
Até hoje gosto muito. E fui dançar num certo ano novo passado, nas areias de Tambaú, com a roqueira do cabelo vermelho mais alegrinha, recém saída de um auê em Aracaju.
Até hoje gosto muito. E fui dançar num certo ano novo passado, nas areias de Tambaú, com a roqueira do cabelo vermelho mais alegrinha, recém saída de um auê em Aracaju.
Ler sua história é um mergulho na luta de uma mulher do rock, imersa nas drogas (lícitas e ilícitas), mas não só. NÃO! Uma menina tipicamente paulistana, mas que queria pular os muros da Vila Mariana para tocar guitarra e cuidar dos gatos nas horas vagas. Muitas notas num só rock! Sua vida vale um passeio! E por Sampa (sim! A música de Caetano), e de uma família bem paulistana, com pai, mãe, agregadas (Balu e Caru), irmãs (Virginia e Mary Lee), madrinhas, tias até mesmo um Jeep Willys, de nome “Charles” etc. Um sobrado que toda a sua vida foi o seu chão, lugar para voltar e chamado de lar.
Rita foi e voltou mil vezes. Foi à loucura/s várias; viveu em comunidade psicodélica com os irmãos Mutantes, casamento meio doido, sumiços etc. Mas sempre tendo como ponto de referência sua mãe, Chesa, seu pai, Charles, seu room of her own, e claro, seus bichos. Muito tocante sua relação com os bichos. E não falo só de cachorro, mas de gato e até cobra. Para loucura de quem com ela dividia a vida, Rita teve duas cobras criadas! Só de ler, saí correndo. Os nomes dos queridos eram sempre nomes da situação em que vivia, fosse filosófica ou mundana: Pitágoras, Caca colo, Fuffy, Leonor!
Vim me aproximar mais dessa delícia de artista num dos programa TV Mulher (Marília Gabriela), quando era figura tarimbada e posteriormente quando fez Saia Justa, programa do GNT, que reunia quatro mulheres famosas e notórias no seu ofício para conversar sobre (e das) Mulheres. Mas, como ela mesmo relata, era mais um alter-ego das outras participantes e funcionava como ombudsman quando o assunto lhe chocava (geralmente natureza e bichos). Foi aí que descobri sua veia extremamente afiada e irônica. Mas uma ironia até certo modo infantil, já que faz tanto uso dos diminutivos – “disquinho bacaninha”.
Sua irreverência na música, no vestir, no dizer e no cantar passou, claramente, para a sua autobiografia. Narrando os fatos da sua vida, Rita tem discurso próprio, como também inventa a Língua Portuguesa e consegue ser ácida até mesmo com as críticas:
“Vai Rita, vista sua guerrilheira do desbum e seja uma porra-louca feliz”
Domingo no Parque – Aqueles caras eram roquenrou pra caralho, pensei eu, ....transformei uma toalha indiana em túnica e vesti ozmano com capas pretas à La Beatles. Antes de entrar no palco com meus pratos, ainda deu tempo de desenhar com batom um coraçãozinho vermelho no rosto.
“A primeira vaia a gente nunca esquece. Aliás, ser vaiado em festival de música brasileira para os Mutantes foi uma honra, afinal, éramos tudo o que os puristas escravocratas do violão e banquinho da MPB repudiavam como imperialismo colonizador. Militância bocejante.”
“Enquanto vocês se masturbam com a minha vida, eu vou ao banheiro queimar um baseado.”
E entre um rock e outro, Rita fala de Danny (cachorro amor amor), Hebe Camargo, Elis Regina , prisão, brigas, das manias ("nojinho, a ideia de fluidos alheios ao meu redor daria um bom nome de filme de terror: o ácaro que devorou a cantora"), das idas aos hospícios/asilos/desintoxicações, das viagens de todos os tipos, dos músicos famosos que conheceu ou não (“Nelson Gonçalves aqui — então Ritinha, estou hospedado no mesmo hotel e pergunto se você está a fim de cheirar umas lagartas de f*der as cartilagens”). Tudo isso num português/inglês que só ela sabe como escrever. Dos vexames, do mercado da música, de amigas malas:
“Hoje, para um artista se dar bem, ele tem que vender a alma ao cartel empresarial, que por sua vez vende a alma ao cartel político, que vende a alma ao cartel da poderosa nova ordem mundial. Muito diabo pra pouco caldeirão”.
“Estávamos sim anos-luz à frente do nosso tempo, pena a nossa alegria espontânea ter perdido para a falsa ilusão da glória passageira".
Rita fala dos seus homens — poucos — e do seu amor arrebatador por um certo Roberto: Ficar de quatro no ato. Seu amor à primeira vista, seu parceiro musical, seu limite, pai dos três filhos, e companheiro dos mundos e do cotidiano. Em inúmeras músicas ela falou dessa paixão, do sexo com tesão, das brigas e pazes, do carinho incondicional, e de todo o amor que houver nessa vida.
O livro é repleto de fotos lindas e cronológicas — família, lanços, colares de pérolas , melindrosas, batizados, praia, meinhas, chapéus, e organdis, James Dean, primeira comunhão, hóstia mordida, loirice caseira, Beatles, Nossa Senhora Aparecida, cílios desenhados de caneta, Tutti Frutti, botas roubadas da Biba, ficha de polícia, bebês, Doce de pimenta, Gil Jiló, R & R in Love. Grávida de Juca! (adorei!), Azmina, vaca sagrada leiteira! Fumando conchas.
Rita Lee é feminista, sim, e também crítica do movimento. Passeia pelo direito das mulheres. Fala de tantas coisas das nossas conquistas. Beleza, solidão, questões de gênero, mas, claro, com sua ironia própria, suas brincadeirinhas afiadas e por vezes nem tanto:
“Nenhuma mulher faz aborto sorrindo. Cabe a elas, e somente a elas, a decisão de interromper uma gravidez, assim como de segurar sozinhas as consequências moral, espiritual e oskimbau. Me refiro ao 'sagrado feminino', de nós meninas que temos um buraco a mais no corpo para administrar, do nosso universo complexo demais para machos, religiosos e políticos meterem o bico, esses para os quais prevalecem mais o direito do feto que ainda nem nasceu ao da mãe que não deseja pari-lo por motivos que não nos cabe julgar, psicológicos, econômicos, neurológicos, até mesmo espirituais”.
“Cor-de-rosa-choque — hino das fêmeas planetárias com sotaque brazuquês. Sendo assim, usei e abusei de palavras-chaves como Eva, menstruação, sexto sentido, gata borralheira, dondoca, sexo frágil, mulher é bicho esquisito, todo mês sangra. Eu lá diante da mulher-tailleurzinho-cinza-soviètico, defendendo a tese: Sabe quando a senhora antes de menstruar sente uma esquisitice hormonal e meio que dá uma pirada? Vulgo TPM”.
Rita Lee não economiza com as suas próprias questões ou abismos. Não tem pudor em se definir, se criticar, se apontar e se redimir:
”O anjinho de procissão que mordeu a hóstia, o menino baiano que tomou um porre na fazenda da tia, a fanática pelos Beatles que assistiu A Hard Day´s Night dezesseis vezes seguidas sem sair do cinema, a rebelada que fugia pela janela para tocar bateria, a hippie comunista que não trancou matrícula na USP, a que foi presa grávida, a mãe do Beto e do Juca. Estava explicado porque a filha, thank God, não foi ser freira nem dentista.”
É direta e sem subterfúgios: “Não saber quando parar is my middle name. Não demorei a entrar no palco já babando, muitas vezes nocauteada antes do bis, para alegria dos jornais locais sensacionalistas. Se naquele tempo tivesse internet, certamente eu não sairia dos trending topics. #PloftCaiu”.
“Sim, é um clichê. Sou mais uma a dizer que o lugar onde mais me sentia em casa era no palco. Lá somos bem mais porretas do que fora dele... O altar do palco é viciante, o lugar mais seguro para se viver perigosamente”.
“Sei que ainda há quem me veja malucona, doidona, porra-louca, maconheira, droguística, alcoólatra e lisérgica , ...confesso que vivi essas e outras tantas, mas não faço a ex-vedete-neo-religiosa, apenas encontrei um barato ainda maior: a mutante virou meditante.”
Ler sua história é ler um pouco da nossa também. Lembrar dos Festivais de Música, da ditadura, da censura, e tantos episódios tristes. E até nesse quesito ela é ímpar , sem perder o humor jamais: “Censura, Solange, mudança das letras – tunnel of Love – Doris Day.”
Ela é humana, demasiadamente humana, quando fala das suas perdas dos entes queridos: beijo na boca no morto, roquinrriu! Bocejos, birinaites, cupins chupins, fundo do poço, Rita cachaceira, Ó céus!
Quanto à velhice, é implacável e meiga quando fala da neta, razão pela qual re-viu seus mergulhos na loucura das drogas e deu um basta. Seu ultimo hospício — Ziza, a neta. Ser avó uma droga melhor e mais orgânica como sempre foi. Aliás viveu sempre nessa dualidade entre o saudável, fosse da forma de viver e se relacionar, e o jogar merda no ventilador e se danar. Equação muito difícil de se administrar. Mas que os seus cabelos de fogo — agora brancos e assumidos — foram sempre a sua força de Sansão. Ziza foi amor intra-uterino. O afeto e afagos dessa menina fizeram da avó uma ovelha, mas mesclada de pele/penugem branquinha das velhinhas que querem bem à vida:
“Aquela cena manjada da celebridade vetusta solitária e saudosa de sua juventude não era minha praia, nem lamentar que os bons tempos não voltam mais, menos ainda tentar exibir boa forma em público com plásticas e botoxes para me dizer viva. Envelhecer com bom humor e uma boa dose de sarcasmo não é para maricas. Sempre dei mais valor à dignidade de uma Hilda Hilst do que àquelas em busca da fonte da juventude que não percebem o tempo como aliado da feitiçaria feminina.”
E não tem dó nem piedade em se despedir dela mesma, quando isso vier a acontecer:
“Santa Rita de Sampa, em homenagem a mim mesma, que havia passado pelos quintos dos infernos e ressuscitado direto para o céu, minha definitiva autocanonização, uma respeitosa e esculhambada adoração à imagem da padroeira dos frascos e comprimidos.”
Rita conseguiu se despedir dos frascos, das drogas lícitas e das agonias. Agora é só cabelo branco (belíssima como na foto da contra-capa do livro), distância (dos palcos) e reclusão (mora longe de Sampa, numa terra toda sua), rodeada de bichos, amor e agora, principalmente, cuidando de sua saúde, em seus 73 anos de vida.
Não é pouco!