“Isto é o caos em vez de música”. Assim intitularam um artigo publicado no Pravda, o jornal oficial do Partido Comunista da União Soviética durante quase um século. Não foi apenas uma vez que o periódico menosprezou o autor deste “caos”. Em um dos editoriais, definiu-o como "vulgar, primitivo, cacofônico, cheio de música nervosa e espasmódica”.
O Pravda se referia à obra de Dmitri Shostakovich, justamente após Stalin ter se retirado da plateia no intervalo da apresentação de uma de suas óperas, "Lady Macbeth", acompanhado dos demais membros da cúpula do Partido. A obra conquistara estrondosa repercussão, encenada 180 vezes em apenas dois anos, e não se sabe exatamente o que intrigou o líder socialista, uma vez que era notória sua admiração pelo compositor russo, tendo comparecido publicamente a outras performances de sua autoria. Assim como não se sabe que conceituação de “caos” o Pravda vinculava ao notável, senão o mais extraordinário pós-romântico soviético. Afinal, não se trata de uma definição exatamente pejorativa considerando-se seus profundos aspectos filosóficos.
A Teoria do Caos é até hoje intrínseca ao espetáculo da existência, celebrada em muitos campos do conhecimento científico. O próprio Universo, microscópico ou macroscópico, seria um fenômeno fundamentado em aparente imprevisibilidade, sujeita a condições não predeterminadas. Assunto que atraiu nomes como Fritjof Capra, Hubert Reeves, André Dreyfus, David Ruelle, Stephen Hawking e o próprio Einstein, entre muitos outros. Para a maioria, nada é presumível e totalmente conhecido no milagre infinito da vida. Pelo contrário, mistérios e buracos negros continuam assombrando, diante dos quais advertiu Hawking, à luz de Dante, na porta do inferno: "Deixai toda esperança, ó vós que entrais".
Parafraseando Alighieri, diríamos “enchei-vos de esperança, ó vós que ouvis a música de Shostakovich” na qual o imprevisível é a beleza. Não há obviedades formais, tonais, objetividade alguma, e sim uma infinda liberdade de expressão. Tal como inconstante é o fluir de tudo o que existe, a exemplo dos processos estocásticos em que o aleatório se contrapõe tão indeterminado quanto perfeito, é a sua música que evolui em direções imponderáveis.
Experimentalismo, narrativa épica, heróica, características próprias, peculiarmente distintas, e ao mesmo tempo irmanadas ao tradicional romantismo ocidental, tudo encanta no universo artístico criado por Shostakovich. Da mais delicada e poética melodia ao mais estrondoso e arrebatador turbilhão sinfônico.
Quiçá tenha sido o poder de criar com tamanha vastidão o que cativou e espantou Stalin, ao ponto de fazê-lo temer a contaminação emocional do povo que mantinha sob jugo político-ideológico. Ressalte-se que a música de Dmitri já havia rompido todos os limites nacionais e contagiado a Europa Ocidental de maneira surpreendente. Principalmente, quando ele foi repudiado a partir de Lady Macbeth e da crítica do Pravda, por não se adequar às normas do “realismo socialista” impostas pelos stalinistas e que todos os artistas e criadores deveriam adotar em sua linha de produção.
Apesar de ser tachado como “inimigo do povo”, Shostakovich continuou conseguindo apoio do governo porque Stalin apreciava notoriamente suas composições, com ênfase às mais de vinte peças dedicadas ao cinema, considerando-o um artista capaz de atingir as grandes massas.
Ao viger das restritivas recomendações oficiais, o compositor estava escrevendo sua quarta sinfonia, mas resolve suspender e dar início à quinta, tentando se moldar aos preceitos políticos recomendados pelo Partido Comunista, e estreou-a com a Orquestra Filarmônica de Leningrado, em novembro de 1937.
Maravilhosamente “caótica”, ainda que sob criatividade supostamente restrita, a Quinta Sinfonia em Ré Menor, Opus 47, foi um imenso sucesso. Com impressionante riqueza temática que se insere em variada gama de possibilidades sonoras inimagináveis, a obra está muito longe de ser bem comportada, estética e formalmente. A diversidade de atmosferas, estilos, abordagens, combinações, timbres, melodias, surpresas que se interpõem tecidas com espantoso senso de unidade traduzem exatamente a certeza de que, em Shostakovich, o caos é tremendamente belo. O Pravda tinha razão, mas não tinha ciência de que aludia a uma obra “fractal”, de geometria não clássica, com partes independentes construindo tessitura com magnífica “anastomose”, em uno e verso, tal como na autossimilaridade caótica.
Em estudos científicos sobre códigos que transcendem a previsibilidade, a arte, a música e a poética se afinam à luz da matemática superior como complexas estruturas geométricas, por vezes associadas a organismos psicodélicos, caóticos e “enlouquecedores”, a exemplo dos fractais que cativam pela hipnotizante beleza.
Assim é a música de Shostakovich. Ramifica-se aleatória e imprevisivelmente como os caminhos de seu balé — “O Córrego límpido” (Op. 64) — pelo leito terreno e pelos raios que se estampam na cúpula celestial tempestuosa.
Apesar de ter sido escrita após a ordem para que os artistas guardassem “fidelidade” ao regime soviético e às “regras” estéticas impostas pelo governo stalinista, Shostakovich venceu todos os limites da liberdade de expressão em sua Quinta Sinfonia. Aliás, alguns críticos referem-se como superiores as obras concebidas durante o período intenso e doloroso de sua história — a Segunda Grande Guerra e o regime stalinista — quando, para poder se ajustar às exigências políticas, exerceu a inspiração de forma inteligente e subliminar, inclusive conseguindo criticá-las sutilmente sem que Stalin e a maioria do público percebessem.
Não havia precedente de tamanho êxito em estreias de outras peças de Dmitri Shostakovich até então. O entusiasmo do maestro Yevgeny Mravinsky, conterrâneo de São Petersburgo, o levou a erguer a partitura da Quinta acima da cabeça para o público que gritava vociferante em delirantes aplausos. Segundo registraram os jornais da época, a ovação durou cerca de 40 minutos e a satisfação da cúpula socialista foi oficializada por uma crítica favorável escrita pelo acadêmico e consagrado escritor russo, Aleksei Tosltói, aliado ao poder. Em outro artigo, o escritor, compositor e musicólogo, Boris Asafyev, definiu a sinfonia como “instável, sensível e evocativa de um conflito gigantesco que surge como relato dos problemas enfrentados pelo homem moderno”, o que corrobora a liberdade formal alcançada em sua música.
Estruturada classicamente em 4 movimentos, a quinta é mesclada com impressionante diversidade na fruição musical inovadora. Não fosse infinita a fertilidade da divina arte, poder-se-ia dizer que ela contém tudo o que a música ousaria exprimir.
Já no movimento inicial (Moderato), o universo é amplamente difuso. Na fatídica introdução, eis o Shostakovich apresentado com a pompa de sua índole sinfônica . O primeiro tema circunscreve-se sob a peculiar seriedade, repetido delicadamente em timbres que se contrapõem variados, ora soando inteiro, ora fragmentado, para concluir a primeira exposição.
O segundo tema começa com reflexões poeticamente ritmadas , solfejado em cordas agudas, depois em sopros, que após uma segunda apresentação, converge em direção à primeira surpresa: o súbito aparecimento de um piano a dialogar solenemente com os metais! . Tudo muda, como sugere o “acaso”, sucedendo-se a rica e agitada profusão que ruma acelerando-se voluptuosamente para mais uma inesperada situação: a celebração marcial militarmente percutida com tímpanos caixas, tambores e, por fim, nos xilofones. que culmina com um “fugato” de angustiados fragmentos do primeiro tema .
Esta parte é finalmente coroada com a aparição do terceiro tema, uma demonstração inequívoca de que um fraseado melódico é capaz de seguir inimagináveis caminhos, fortuitos como o traçado de riachos e auroras boreais, sem se afastar da coerência contextual de sua natureza criativa .
Seguindo-se à apologética conclusão, abruptamente despontam raios de ternura na insólita atmosfera que casualmente se instala na dulcíssima melodia conduzida pela flauta transversal que dialoga com o lamento das trompas. O clarinete entra, seguido de fagote, oboé, e, por fim, cellos e metais se fundem aos mistérios da etérea e crepuscular despedida, salpicada pelo brilho do flautim, das harpas e de uma doce celesta .
Eis que se instaura o jocoso segundo movimento, deliciosamente dançante e musicalmente debochado . O bucolismo campestre saltita valsando por sopros e madeiras como a parodiar o “efeito borboleta” da Teoria do Caos nos volteios de borboletas em um jardim florido.
Um tema sincopado extremamente gracioso e dançante marca este andamento com personalidade inesquecível . É o Shostakovich folclórico, circense, das valsas, da arte russa, do balé, sentido em cada nota, cada arpejo, cada frase do mundo colorido deste provocante Allegretto, intensificado por amoráveis pizzicatos e staccatos. O clima burlesco prossegue, canta as síncopes mais uma vez e subitamente se encerra .
Notícias da época enfatizaram a grande emoção que o Largo (3º movimento) causou na plateia. Lágrimas foram vistas descendo dos olhos ao peito enternecido, com a alma nitidamente circunspecta. Neste andamento, o autor convoca o ouvinte a uma pausa para um encontro com questionamentos íntimos que só a consciência desnuda penetra. Lá se encontram dúvidas e reflexões existenciais que se lançam sobre vivências e experiências de todos os contornos do eu. Há no que é revelado pela música certo espanto perante a grandeza da criação: um convite à introspecção resignada que emerge da sabedoria de uma compreensão maior. É ternura o que soa, é poesia o que deflui da cativante sonoridade.
Ao longe, agudos violinos se juntam à latente nostalgia e conversam com os cellos para introdução da magia, no encanto das harpas que elevam o canto da flauta às alturas da sublimidade . Uma imensa paz toma conta do ser, que entra em transe com a mensagem acalentadora.
Mas a evolução insiste em provocar as angústias do imprevisível e cresce com a orquestra (1637) à culminância evocativa da inexorabilidade que clama no existir, aquietando-se em seguida no acolhedor aconchego dos violoncelos . Um novo instante de reencontro com a paz intercede-se pelo oboé clamando o olhar às belezas da natureza que se ergue como bênção ao planeta, como raios de luz a se infiltrar pelos bosques, no amanhecer silencioso e orvalhado. Sopros diáfanos se juntam à cena que enleva o espírito a um delicado estado de contemplação e serenidade.
Mas em Shostakovich nada é estanque, tudo surpreende e o Largo prossegue com efusiva declamação orquestral, trêmula e trágica, martelada pelo xilofone, elevando o contexto ao ápice como se desejasse exorcizar toda a instabilidade provocada no íntimo do espectador . E a conclusão, outra vez inusitada, devolve o encantamento que cintila oniricamente no cosmo, com as harpas dando suporte ao canto agudo de flautas e violinos, magistralmente arrematado com a delicadeza da celesta .
Finalmente esbraveja o velho Dmitri, bem ao seu entusiasmado estilo, anunciando o último movimento. Um verdadeiro desafio aos músicos diante da complexidade de execução com grandiosidade frenética a se infiltrar em todos os timbres, entrosados em perfeição logo coroada com o triunfante tema que remonta às suas composições cinematográficas composições cinematográficas .
A riqueza cromática em que se desenvolve o “Allegro non troppo”, último movimento, parece ter sido criada para enfeixar todas as intenções de Shostakovich para concluir a tão emblemática peça. Afinal ele precisava responder às fronteiras impostas pelo regime à sua criatividade em um nível de interpretação capaz de se impor com toda a personalidade a si consagrada pela inconteste admiração do povo russo. E conseguiu! Até hoje, a quinta sinfonia se inclui entre as obras mais tocadas no mundo erudito, havendo quem a considere como, sem dúvida, uma obra-prima.
Isto fica claramente enfatizado em vários momentos da sinfonia, mas com ênfase fortemente exacerbada no Allegro, em trechos que expõem o tema, sobretudo no glorioso e espetacular final . Quando se esclarecem as razões que abalaram o público presente à decantada “première”, aplaudindo por mais de meia hora um dos eméritos símbolos da música clássica soviética. Era a consagração de toda a maravilha que o caos inteligente pode produzir.