O leite era escasso. O que remiu o lactente de 87 anos atrás foi a cabra preta de seu Emídio, morador com casa um pouco acima da várzea de cana. Como todo dono de engenho, meu pai pagava mal os dias de sujeição da semana, mas com ele cada morador tinha seu hectare de subsistência. Farinha é que não faltava.
Outra: “Comida de panela não faz o gosto desse menino” – era o que eu mais ouvia. Talvez fosse a falta de gosto ou o mesmo gosto da carne que minha mãe torrava.
Quando fui para o internato a diferença era grande, ainda que a maioria dos internos reclamasse. Eles certamente tinham coisa melhor em casa, eram filhos de fazendeiros, o gado no curral certamente a reclamar por finas cozinheiras. Outra civilização, sem dúvida. Não me parece diferente o sentido de “A Bagaceira”, que sobe do de comer ao caráter. Mas é outro assunto.
Na verdade, eu era biqueiro com comida de panela. E fazia a diferença nas frutas de safra, um despotismo de fartura no tempo de manga ou no maná de todo tempo como a jaca-manteiga do bago miudinho, o araçá e a cana, desde que fosse caiana.
Sim, tinha o puxa-puxa e a rapadura quentinha, pastosa e branda saindo da pá de mão do banqueiro. Isto na derradeira tachada do cozimento, os meninos de espera, vendo o caldo virar rapadura e a rapadura sendo emalada na palha seca do garajau, serviço que, de cócoras horas a fio, meu pai não confiava a ninguém.
Em casa, era o meu lanche, duas, três vezes por dia escorado entre a parede e a jarra, o copo na mão e a rapadura puxando por água.
Puxar por água era linguagem de quem se fazia na rapadura. Menino de engenho, não é por outra que Zé Américo, em briga com Pedro Gondim, que fizera reparo num “doce” de metáfora que o ministro empregara em discurso, saiu-se com esta: “Coitado, ele só entende de doce o que puxa por água”. O governador Pedro ficou por aí.
E quando tinha beiju de forno? Quem sabe o que é isso, meu Deus? Era o beiju por baixo da farinha, o rodo mexendo sem tocar na goma, deixando ele solto, fofo, rendendo os apuros do colonizador, como está nos cronistas da seleção de Cascudo. Isso com rapadura!... E com queijo de coalho, os três juntos?!
Já bem maduro, ambientado na culinária rotineira da cidade, vi Malaquias Batista culpar a rapadura pelo estrago nos dentes, reparo que não encontrei no velho A. da Silva Melo, cientista da nutrição que a empregava nas sobremesas operárias das fábricas do Rio. No entanto, eu não tinha muito o que duvidar do nosso valioso cientista da nutrição e não menos valioso editorialista de A União dos anos 1960. É caririense dos domínios de Monteiro, feito no leite, ardendo de proteínas, o lazarino do físico fazendo jus a uma das mais seguras vocações de cientistas que conheci.