Tenho por hábito fazer alguns exercícios de memória. Costumo buscar nos escondidos do tempo, passagens de minha primeira infância lá nos espinhaços da Mantiqueira. Tudo começou em Campos do Jordão, bem nos altos de Jaguaribe (olhem a coincidência), bairro que fica entre Abernéssia e Capivari. Casa de madeira, como a maioria delas por lá naqueles anos distantes. Ainda na memória, que em frente à minha, era a morada de Dona Gabriela de Seu Juca, um pouco abaixo a de Seu Zequinha que tinha banca de frutas no Mercado Municipal.
Meu pai gostava de me fotografar. Eu fazendo pose de boné e pisando numa bola de capotão. Ele sonhava que um dia eu seria um Ademir de Meneses, um Zizinho. Passei longe disso. Como a maioria dos meninos de lá não deixava de calçar minhas botinas, aquele mesmo modelo com que Monteiro Lobato calçou seu
Tinha eu o quê? Uns dois anos, se tanto quando nos visitou Dona Sianinha, já arcadinha pelo peso de muitas décadas. Cabelos bem branquinhos e veio toda sorridente me abraçar. Eu puxando o sotaque carioca de minha mãe, perguntei assustado:
— Ela não me morde?
Deixei todos de saia justa. Minhas tias ainda se recordam desse desconforto diante da visitante. Lembro-me dessas e de outras coisas dos meus verdes anos. Hoje esqueço onde deixei a chave do carro minutos antes.
Não tinha eu nem três anos, quando o Partido Comunista determinou que meu pai teria que exercer sua militância em Taubaté. Mudamos para lá, mas como se diz por aí: saí das montanhas, mas as montanhas não saíram de mim. Sempre que posso estou por lá matando minhas saudades.
Guardados ainda no doce cantinho das lembranças, as férias de julho, eu e meus irmãos sempre por lá. Nas comemorações que se iniciavam no Natal, retornávamos àquela casa mágica dos meus avós na Vila Ferraz para atestarmos o óbito de mais um ano e o nascimento de outro.
Enfim, aquele canto do mundo sempre será tão mágico como são também as areias das praias onde escolhi para viver o outono de minha vida. Aqui estimo os pés descalços nos botecos à beira-mar, a cerveja com os amigos na temperatura certa (a cerveja e os apaniguados).
Aqui, já no amadurecer dos anos, foi quando tomei gosto pelas pescarias. Não me importo se a pesca será produtiva ou se nem uma piabinha ficar presa nos meus anzóis. Sempre haverá por ali um outro que também se acha pescador para puxar uma boa prosa, dizer mentiras e me oferecer uma lapada da “marvada”. Bom demais esses momentos a beira mar, esquece-se do mundo, do boleto para pagar no dia seguinte.
O que seria de mim sem a convivência fraterna com essa gente que gosta de rabiscar emoções para o deleite de minhas leituras? Meus poetas, meus prosadores, gente da melhor cepa que algumas vezes arriscam ler algumas garatujas que cometo advindas dessa minha pretensão de me tornar um escrevinhador.
É isso meus amigos, minhas amigas. É quase um drama kafkiano: escolher onde devo gastar esses anos que ainda me restam. Estou aqui me machucando com essa indecisão: a praia ou as montanhas? Pensam que a decisão é fácil? Não é. Mas um dia, mais para frente, terei que decidir: ou visto uma bermuda ou volto a calçar minhas botinas? O resto é silêncio.