O menino e o velho
A soma dos contrários rege a vida e a tudo imprime o seu variado aspecto. Assim é que, a toda despedida, corresponde também um recomeço. E a todo olhar brilhante de alegria subjaz uma nota de tristeza; como ao feio, que às vezes horroriza, deve mesclar-se um fundo de beleza. Não há quem desse dualismo escape e dentro em si não perceba o contraste, que é a própria essência do viver. Também em mim provei tal desatino, pois se hoje persisto em ser menino, bem cedo comecei a envelhecer.
Se você permanece indiferente à dor dos outros; se mente sem pejo; se parater vantagem até consente em (como Judas) disfarçar um beijo; Se prega a honestidade mas, no escuro, age como uma ave de rapina, roubando aqueles que batalham duro por meio do conchavo e da propina; Se pensa que toda mulher é fácil; que o estudo é coisa de pascácio e basta ter dinheiro pra vencer, então, amigo, pode ficar certo de que você, com esse jeito esperto, não passa de um grande efedepê.
Ao deparar com a sucessão do tempo, o homem se amedronta e se apequena. Pensa na morte – o vão coroamento que o destrói ao lhe apagar as penas. Procura então com o véu da fantasia escapar ao rigor da Natureza, que o pôs no mundo para que um dia retorne a ela (essa é a certeza). Para curar-se, enfim, da vã loucura de ser perene, suplantar a idade, em meio ao tempo que tudo tritura, bastara-lhe meditar nesta verdade: se o transitório habita no que dura, é no instante que mora a eternidade.
Todo mito passa um pito nos que lhe entoam benditos. O mito só faz sentido quando a olhos comovidos disfarça, sem alarido, o seu avesso escondido. Os que o consagram nos ritos (com mãos postas, ar contrito), se o vissem desvestido da aura que o mantém vivo, teriam, desiludidos, que mudar o veredicto e procurar outro arrimo para seus ermos espíritos. Não pode viver sem mitos o homem – ser tão restrito, que deles subtraído erra no Nada infinito. E dessa carência, o risco (ante o anseio mofino de a tudo entoar um hino) é perder o senso, o tino, privar-se do humano exílio, que o põe além dos bichos.
A soma dos contrários rege a vida e a tudo imprime o seu variado aspecto. Assim é que, a toda despedida, corresponde também um recomeço. E a todo olhar brilhante de alegria subjaz uma nota de tristeza; como ao feio, que às vezes horroriza, deve mesclar-se um fundo de beleza. Não há quem desse dualismo escape e dentro em si não perceba o contraste, que é a própria essência do viver. Também em mim provei tal desatino, pois se hoje persisto em ser menino, bem cedo comecei a envelhecer.
Ícone
Diante de ti, quedo e comovido, vislumbro o espaço de que estou proscrito. Tua plenitude, simétrica ao vazio em que me debato, é como a de um rio que desdobra o tempo para além do fim. Faz sonhar o sempre no que morre aqui. O que és não importa, mas sim o que vejo na fome infinita com que te desejo.
Soneto zangadoDiante de ti, quedo e comovido, vislumbro o espaço de que estou proscrito. Tua plenitude, simétrica ao vazio em que me debato, é como a de um rio que desdobra o tempo para além do fim. Faz sonhar o sempre no que morre aqui. O que és não importa, mas sim o que vejo na fome infinita com que te desejo.
Se você permanece indiferente à dor dos outros; se mente sem pejo; se parater vantagem até consente em (como Judas) disfarçar um beijo; Se prega a honestidade mas, no escuro, age como uma ave de rapina, roubando aqueles que batalham duro por meio do conchavo e da propina; Se pensa que toda mulher é fácil; que o estudo é coisa de pascácio e basta ter dinheiro pra vencer, então, amigo, pode ficar certo de que você, com esse jeito esperto, não passa de um grande efedepê.
Dali e d'Além
Com o nome de Salvador, ele se queria Deus. Então um milagre obrou (para espanto dos ateus). Quando seu corpo exumaram, deu-se o fato surreal, que os que por lá estavam dizem não ter visto igual: em meio ao corpo que some (vejam bem se isso pode!), a terra, que tudo come, não lhe alterou o bigode!!
Eterno retornoCom o nome de Salvador, ele se queria Deus. Então um milagre obrou (para espanto dos ateus). Quando seu corpo exumaram, deu-se o fato surreal, que os que por lá estavam dizem não ter visto igual: em meio ao corpo que some (vejam bem se isso pode!), a terra, que tudo come, não lhe alterou o bigode!!
Ao deparar com a sucessão do tempo, o homem se amedronta e se apequena. Pensa na morte – o vão coroamento que o destrói ao lhe apagar as penas. Procura então com o véu da fantasia escapar ao rigor da Natureza, que o pôs no mundo para que um dia retorne a ela (essa é a certeza). Para curar-se, enfim, da vã loucura de ser perene, suplantar a idade, em meio ao tempo que tudo tritura, bastara-lhe meditar nesta verdade: se o transitório habita no que dura, é no instante que mora a eternidade.
O outro
O demônio que me habita é o melhor de mim. Ele me faz desagradável aos outros, e tenho que me tornar brando para disfarçá-lo (quanta delicadeza na máscara angelical!). O demônio sabe o que eu não sei, magoa-me com o seu negro ceticismo. Mas há momentos em que rimos juntos (por isso digo que ele é o melhor de mim).
O mito e o riscoO demônio que me habita é o melhor de mim. Ele me faz desagradável aos outros, e tenho que me tornar brando para disfarçá-lo (quanta delicadeza na máscara angelical!). O demônio sabe o que eu não sei, magoa-me com o seu negro ceticismo. Mas há momentos em que rimos juntos (por isso digo que ele é o melhor de mim).
Todo mito passa um pito nos que lhe entoam benditos. O mito só faz sentido quando a olhos comovidos disfarça, sem alarido, o seu avesso escondido. Os que o consagram nos ritos (com mãos postas, ar contrito), se o vissem desvestido da aura que o mantém vivo, teriam, desiludidos, que mudar o veredicto e procurar outro arrimo para seus ermos espíritos. Não pode viver sem mitos o homem – ser tão restrito, que deles subtraído erra no Nada infinito. E dessa carência, o risco (ante o anseio mofino de a tudo entoar um hino) é perder o senso, o tino, privar-se do humano exílio, que o põe além dos bichos.