Pouco depois do atentado de 11 de Setembro, eis que aparecem sobre os telhados de Paris as figuras de Monsieur Chat, um gato amarelo sorridente. Ao seguir seus passos, o diretor descreve a história francesa recente - que inclui eleições, manifestações, escândalos governamentais — por meio do olhar atento deste estranho grafite.
Esta é a sinopse do filme Gatos Empoleirados (Chris Marker, 2004) que traduz a fina ironia gaulesa e inquietação (até aqui) discreta no desconcerto global do novo milênio.
Uma mirada sobre o cinema francês — colocando em perspectiva o debate acerca do Poder e da Comunicação — se mostra importante por vários motivos:
Primeiramente, porque a França possui uma modalidade de produção cultural historicamente crítica, cujos atores, cineastas, estetas, jornalistas e apreciadores da sétima arte têm se caracterizado pelo engajamento em termos estéticos e ideológicos, formais e plásticos, em luta pela liberdade, autonomia e emancipação.
Depois, aponta uma alternativa para o circuito cinematográfico que concorre com a indústria de Hollywood, na medida em que define os termos de uma identidade cultural, mesmo e por causa das negociações simbólicas com os modelos globalitários e comerciais norte-americanos.
E finalmente porque o cinema francês, desde a "Nouvelle Vague", não cessa de dialogar com a produção cinematográfica brasileira, compondo outro prisma da conexão entre as artes audiovisuais e as identidades latinas na época da mundialização.
Cumpriria fazer aqui algumas considerações focando o fenômeno do poder e o cinema no contexto francês.
Primeiramente, cumpre relembrar o caráter nacionalista da sociedade francesa que, estrategicamente, se empenhou em realizar a primeira revolução burguesa do mundo e como metrópole ocidental antecipou a globalização avant la lettre, colonizando inúmeros países da África e do Oriente, e o que há de positivo nessa experiência colonialista é a arte absorver o melhor das suas ex-colônias, revigorando a imaginação criadora.
Hoje, Paris e outras cidades francesas experimentam em casa e na própria pele a revanche do multiculturalismo. As novas gerações (árabes, afrodescendentes) imprimem as suas impressões digitais na cultura francesa, mas nem sempre se integram à normatividade sociocultural e política, daí desencadeiam-se conflitos. Isto, por um lado, representa um tipo de caos, distúrbio e decadência para um cenário cultural outrora relativamente tranquilo, mas por outro lado, significa um novo estilo de "revolução", resposta ao racismo, intolerância, segregação e dissociabilidade.
Tudo isso já fora prenunciado em filmes indignados como Delicatessen (Jean-Pierre Jeunet, 1991), O Ódio (La haine, Kossovitz, 1995), Irreversível (Gaspar Noel, 2002) e Banlieu 13 (Pierre Morel, 2004), e reaparece em todas as cores e credos nos filmes franceses mais recentes como Intocáveis e Samba (Olivier Nakache e Eric Toledano, 2011 e 2014), Que mal eu fiz a Deus? (Philippe de Chauveron, 2014).
Em cena, os mestiços franceses, árabes, africanos, orientais, latinos, francofônicos descendentes, migram dos subúrbios, são excluídos e indignados, exigem o seu lugar no mundo do trabalho, das atividades sociais, das decisões públicas.
Numa palavra, o cinema francês, como o brasileiro, tem exibido os abismos sociais e as fraturas do cotidiano, sintoma de um projeto neoliberal, que dá mostras de insustentabilidade.
Apreciando uma cultura de tradição verbal, como a francesa, à primeira vista ressalta aos olhos, a maneira com o cinema absorveu — mais do que em qualquer outro país — a retórica literária. Mas este é um país privilegiado pelo extraordinário acervo das artes plásticas, pintura, escultura, arquitetura, moda, design, publicidade; a França é hors concours em matéria de comunicação visual. Além da tradição de dramaturgia, que também fornece grande parte da matéria prima do cinema francês, o estilo de vida parisiense, desde a época dos Luíses, passando pela urbanização de Haussmann, a construção das Passagens, a decoração dos ambientes, a etiqueta e o adestramento na construção dos interiores, atestam uma modalidade de mise-en-scène que antecipa a simulação da vida imaginada no cinema.
As imagens da Cidade-Luz, os grandes diretores e a constelação de estrelas, que fizeram a fama do cinema francês ao longo do século XX, contribuíram para a consolidação de um estilo narrativo que reúne arte, existência, ficção e história, produções que primam no trabalho de elaboração do princípio do sonho (ficção) e princípio da realidade (documentário).
No cinema ocidental há manifestações das interculturalidades embaladas pelos véus da beleza, bom gosto e elegância, mas há também projeções de uma razão sensível ao mal-estar, angústias e inquietações face às desordens sociais, econômicas e políticas globais. Logo, cumpre apreciar a história do cinema francês percebendo como este libera os deuses e monstros que habitam os seus seculares territórios simbólicos.
A título de ilustração, há alguns filmes que servem de pretexto para uma compreensão das relações entre o poder e a sociedade no contexto francês: A Grande Ilusão (Renoir, 1937), Les Enfants du Paradis (Marcel Carné, 1945), Hiroshima Meu amor (Alain Resnais, 1959), Os Incompreendidos (Truffaut, 1959), A Chinesa (Godard, 1967), além das versões da obra prima de Victor Hugo, Os Miseráveis, para o cinema, são clássicos que levam a um aprendizado estético do social.