Quem afirma é Rosa Freire D’Aguiar, viúva de Celso Furtado, no prefácio do livro Correspondência Intelectual – 1949-2004, organizado por ela e recentemente publicado pela Companhia das Letras: “Em 1975, tendo recuperado os direitos políticos cassados por dez anos, ensaiou uma volta para o Brasil. A convite da Universidade Católica de São Paulo, lá esteve por um semestre, responsável por um curso sobre economia do desenvolvimento. Era a primeira – e seria a última – vez que lecionava numa universidade brasileira”. Veja só.
Como se sabe, em 1964, logo após a tomada do poder pelos militares, Furtado teve de sair do país, onde então dirigia a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, entidade por ele idealizada ainda no governo de Juscelino Kubitschek. Ele fazia parte da primeira lista de cassados pelo Ato Institucional nº 1, de 9 de abril daquele ano, encabeçada por Luís Carlos Prestes, João Goulart e Leonel Brizola. Nesse difícil momento, ainda segundo sua viúva, “havia recebido telegramas de três conceituadas universidades americanas – Harvard, Columbia e Yale -, convidando-o para nelas lecionar”. Veja só, mais uma vez. Enquanto as universidades brasileiras, mesmo depois de finda a ditadura, parecem nunca ter se lembrado de convidar Furtado para ensinar, como se ignorassem deliberadamente o imenso prestígio acadêmico internacional do paraibano de Pombal, as mais conceituadas universidades dos EUA e da Europa disputavam a honra de tê-lo em seus quadros. É o que se pode chamar de suprema esnobação tupininquim – ou de burrice nacional, simplesmente.
Celso Furtado permanecerá inicialmente na Universidade Yale de setembro de 1964 a junho de 1965, até ir, em agosto deste último ano para a França, onde foi nomeado como professor associado da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris, em ato da lavra do então presidente Charles de Gaulle. Isto após ser, pouco antes, convidado para lecionar em Oxford.
Em 1969, o sucesso das aulas de Furtado na Sorbonne fez com que tivesse de trocar a sala de aula por um auditório com capacidade para 140 ouvintes. E entre seus inúmeros alunos desse tempo, que viriam a se destacar posteriormente, contam-se dois presidentes da República: Alan García, do Peru, e Abolhassan Bani Sadr, do Irã, sem falar em outros que se tornaram ministros, banqueiros e catedráticos em várias partes do mundo.
Se era esquecido (ou esnobado) pelos dirigentes universitários brasileiros, não o era pelos estudantes de seu país. De acordo com Rosa Freire D’Aguiar, durante os anos de exílio, ele costumava receber dezenas de convites “para ser patrono ou paraninfo em cerimônias de colação de grau”, não só de formandos em economia, “mas também em veterinária, biociências, história, enfermagem”, o que demonstra que os jovens brasileiros, das mais diversas formações, queriam ver e ouvir o conterrâneo ilustre e sábio. Cegueira dos velhos e visão dos novos, fenômeno nacional que nos outros lugares costuma ser o contrário.
Tudo isto me faz lembrar o reitorado do professor Lynaldo Cavalcanti, em nossa UFPB do fim dos anos 1970. Ele não só expandiu a universidade com a criação de novos cursos e campi, mas trouxe para o nosso meio, então muito provinciano, inúmeros professores pós-graduados do exterior e de outros estados brasileiros, os quais, com saberes e mentalidade mais adiantados, oxigenaram a nossa academia aldeã com ares mais cosmopolitas, o que, no balanço final, muito contribuiu positivamente para o progresso mental não só da instituição mas da Paraíba como um todo. Até Lynaldo, a UFPB era composta, no quadro docente, quase que totalmente pela chamada “prata da casa”, ou seja, profissionais graduados que aqui residiam desde sempre e que foram sendo convidados, nem sempre com o critério desejado e quase sempre sem concurso, para a cátedra universitária; primeiro, pela carência de outros profissionais aptos para o ensino superior, e depois, porque a então boa remuneração, paga à época aos professores federais, logo passou a ser perseguida como complementação salarial – e até mesmo como renda principal – pela elite paraibana graduada, a qual, como seria natural, preferia manter reservado para si, em caráter de exclusividade, esse promissor e rentável mercado de trabalho. Essa a razão de muitas das resistências locais enfrentadas por professor Lynaldo, quando se dispôs, corajosa e visionariamente, a quebrar o atrasado e injustificável monopólio tabajara. É claro que na “prata da casa” havia também docentes vocacionados e competentes. Esses se destacaram e lideraram as primeiras décadas de nossa instituição maior.
Mas o que quero mesmo ressaltar é que uma verdadeira universidade, dotada do verdadeiro espírito acadêmico, busca sempre atrair e acolher professores de fora, principalmente os mais renomados. Simplesmente porque são esses forasteiros que costumam trazer novas contribuições teóricas e práticas, são eles que fazem avançar os saberes institucionais, sem prejuízo, é claro, da colaboração que possa ser trazida pelos profissionais nativos.
No caso da UFPB dos começos, a verdade incômoda é que muita gente foi contratada como docente sem possuir nenhum espírito de Academia. E o que é pior: sem nenhum interesse em obtê-lo e cultivá-lo. Gente que via o ensino superior como mera atividade de funcionário público, trabalho burocrático e não intelectualmente criativo, uma gente que nunca pesquisou nada, nunca publicou nada e que, não raro, nem sequer abria um livro para preparar uma aula medíocre. Conheci vários desses em meu tempo de aluno. Esse pessoal, como não poderia deixar de ser, foi quem mais sentiu os ventos da mudança operada pelos forasteiros de professor Lynaldo, os quais, muitas vezes cabeludos e barbados, para espanto da conservadora burguesia da aldeia, trouxeram não só o futuro à universidade, mas, em muitos casos, até mesmo o presente, já que, em algumas áreas, vivia-se ainda ostensivamente no passado, num mundo de saberes e posturas ultrapassados.
Não convidar Celso Furtado para as nossas universidades é bem coisa do Brasil. E não se venha alegar seu esquerdismo, pois quem mais anticomunista que De Gaulle, o estadista cioso que não hesitou em nomeá-lo?