Meu amigo Germano, nesse pouco tempo em que nos conhecemos, constatei que temos algumas coisas em comum. Uma delas é o amor pelas viagens. Nada sei de sua relação com Roma, essa cidade que adoro, pela sua história, por ser um museu a céu aberto, por cada centímetro de seu chão estar marcado pelas decisões que mudaram a face do ocidente. Roma é caso único, na história da humanidade, de uma cidade de origem pastoral que dominou o mundo e ditou até a maneira de contarmos o tempo. Haverá tempo para falarmos dela.
Agora mesmo, meu amigo, estou lendo o romance A Obra (L'Oeuvre, 1886), de Émile Zola, este gigante que se fez escritor, na esteira de outro gigante, Victor Hugo. Cada um dos romances da série Les Rougon-Macquart apresenta um tema específico, cujo elo é a saga dessa família sob o Segundo Império. A Obra é o romance que trata da vida dos artistas – pintores, músicos, escritores. Vida dura, muitas vezes, em que a pobreza no limite da miséria é nutrida pelo sonho da arte, da grande arte redentora.
Eles vivem o início de uma revolução nas artes, principalmente os pintores, e não são compreendidos pelos marchands, nem pelo público, que prefere uma arte mais comportada. Ainda que façam a apologia e reconheçam o inquestionável valor de Delacroix, seu ideal é Courbet, ideal nos apresentado pelo chefe do bando, o pintor Bongrand, cujos dois mais importantes quadros, “Noce au village” e “L’Enterrement au village”, são referências aos quadros de Courbet “La Noce à Ornans” e “L’Enterrement à Ornans”. Sim, este Courbet que choca a sociedade parisiense com sua tela “L’Origine du monde”. Os dois quadros de Bongrand são como os dois de Courbet, saindo da festa para o enterro, numa alusão direta à revolução estética em direção ao Realismo, de que este pintor é um dos líderes.
Também já não temos aqui, meu amigo, a visão sombria, porém justa, de um Jean-Valjean, escondendo-se e protegendo a sua querida Cosette, em moradias longe dos olhares dos passantes e cuja única bela imagem de Paris é a do Jardin de Luxembourg, onde ocorre o primeiro encontro entre Marius e Cosette. Zola sai das mansardas e dos esgotos, da fuga e da angústia da perseguição, tão pujante e tão pungente em Hugo, para a Paris dos artistas, apresentada na sua beleza e nos devaneios da flânerie, “qui gâte les jambes”. Para Claude, sair do pequeno apartamento/atelier é buscar a rua inspiradora, juntando-se aos amigos e ganhando a esplanada dos Inválidos, onde há espaço suficiente para gesticular.
É assim que pelos olhos de Claude vemos Paris sendo apresentada a Christine, a jovem tímida, provinciana e cheia de pudores, órfã recém-saída do convento e recém-chegada a essa cidade que sempre mostra os dentes, como diz Hugo, para rir ou para rosnar. Se os Amigos da Sociedade do ABC se propõem a enfrentar as armas da repressão monárquica, mostrando desprezo a uma vida que não seja republicana, o Bando dos artistas da arte ao ar livre, na febre e folia dos vinte anos, demonstra um firme desdém, desdém do mundo inteiro, entregues à sua paixão artística, livres das enfermidades humanas.
Meu amigo, ficaria horas falando de Paris e da viagem que esse romance está me proporcionando, suprindo, através do prazer estético, a necessidade de estar in loco, andando sem rumo e me embriagando do charme dessa cidade inigualável. Que aos olhos de outras pessoas pareça elitismo ou o que queiram chamar, ça m’est égal! Só sabe o que é Paris, quem viveu Paris.
Ao finalizar, deixo para você, Germano, esta imagem maravilhosa da Île Saint-Louis, pegando Notre-Dame por trás, como navio ancorado à entrada da Vila de Lutécia, na visão de Zola:
“Mais leur trouvaille, ce jour-là, ce fut la pointe occidentale de l’île, cette proue de navire continuellement à l’ancre qui, dans la fuit des deux courants, regarde Paris sans jamais l’atteindre” (L’Oeuvre, Chapitre IV).
“Mas o achado deles (Claude e Christine), nesse dia, foi a ponta ocidental da ilha, essa proa de navio, continuamente ancorado que, na fuga das duas correntes, olha Paris sem jamais atingi-la” (A Obra, Capítulo IV).
Meu abraço, com saudade,
Milton