Meu amigo Germano, nesse pouco tempo em que nos conhecemos, constatei que temos algumas coisas em comum. Uma delas é o amor pelas viagens. Nada sei de sua relação com Roma, essa cidade que adoro, pela sua história, por ser um museu a céu aberto, por cada centímetro de seu chão estar marcado pelas decisões que mudaram a face do ocidente. Roma é caso único, na história da humanidade, de uma cidade de origem pastoral que dominou o mundo e ditou até a maneira de contarmos o tempo. Haverá tempo para falarmos dela.
Sei, no entanto, de sua paixão por Paris. Ah, esta Paris! Costumo designá-la no feminino, embora os franceses a masculinizem e a chamem “Ce Paris”. Sim, esta Paris, pois sinto-a sempre envolvente, bela e sedutora, com um charme cultural que nos toma à primeira vista. À medida que a vamos conhecendo, sentimos que, a cada canto, cada visão se torna um olhar, um aceno, um sorriso, et voilà! on est saisi par Paris. Estar em Paris é suficiente. Não precisamos de mais nada. A História por toda a parte, a beleza das pontes e das ilhas, os museus, as livrarias, as vitrines, os jardins, os bosques, o prazer de andar sem rumo, flanando à la Baudelaire, porque todos os caminhos são caminhos arrebatadores. Nem quero falar na comida, pois seria redundante.
Agora mesmo, meu amigo, estou lendo o romance A Obra (L'Oeuvre, 1886), de Émile Zola, este gigante que se fez escritor, na esteira de outro gigante, Victor Hugo. Cada um dos romances da série Les Rougon-Macquart apresenta um tema específico, cujo elo é a saga dessa família sob o Segundo Império. A Obra é o romance que trata da vida dos artistas – pintores, músicos, escritores. Vida dura, muitas vezes, em que a pobreza no limite da miséria é nutrida pelo sonho da arte, da grande arte redentora.
Este romance, Germano, nos traz de volta Claude Lantier, aquele pintor sobre cuja visão maravilhosa escrevi, explodindo na profusão das cores e dos matizes das frutas e legumes de Les Halles, no romance Le ventre de Paris. Ele é o personagem principal, pintor angustiado, que integra um grupo chamado de “Bando dos artistas da arte ao ar livre” (Bande des artistes de l’art en plein air). Sim, parece estranho esse grupo ser chamado de “bando”, mas é isto mesmo.
Eles vivem o início de uma revolução nas artes, principalmente os pintores, e não são compreendidos pelos marchands, nem pelo público, que prefere uma arte mais comportada. Ainda que façam a apologia e reconheçam o inquestionável valor de Delacroix, seu ideal é Courbet, ideal nos apresentado pelo chefe do bando, o pintor Bongrand, cujos dois mais importantes quadros, “Noce au village” e “L’Enterrement au village”, são referências aos quadros de Courbet “La Noce à Ornans” e “L’Enterrement à Ornans”. Sim, este Courbet que choca a sociedade parisiense com sua tela “L’Origine du monde”. Os dois quadros de Bongrand são como os dois de Courbet, saindo da festa para o enterro, numa alusão direta à revolução estética em direção ao Realismo, de que este pintor é um dos líderes.
Como é interessante observar, meu querido Germano, o contraponto que este romance de Zola faz com Os Miseráveis, de Hugo! Se neste temos os Amigos da Sociedade do ABC, formada por jovens estudantes pobres e revolucionários, acreditando em uma sociedade republicana e partindo para as insurreições e barricadas malfadadas contra Louis-Phillipe, último rei de França, em A Obra, os jovens acreditam na revolução estética, numa arte que poderá mudar os conceitos moralistas da sociedade. Não há a política explícita, nem necessidade de armas, até porque o império de Napoleão III está se aguentado como pode.
Também já não temos aqui, meu amigo, a visão sombria, porém justa, de um Jean-Valjean, escondendo-se e protegendo a sua querida Cosette, em moradias longe dos olhares dos passantes e cuja única bela imagem de Paris é a do Jardin de Luxembourg, onde ocorre o primeiro encontro entre Marius e Cosette. Zola sai das mansardas e dos esgotos, da fuga e da angústia da perseguição, tão pujante e tão pungente em Hugo, para a Paris dos artistas, apresentada na sua beleza e nos devaneios da flânerie, “qui gâte les jambes”. Para Claude, sair do pequeno apartamento/atelier é buscar a rua inspiradora, juntando-se aos amigos e ganhando a esplanada dos Inválidos, onde há espaço suficiente para gesticular. Não mais a solidão furtiva de Jean Valjean, meu querido amigo, mas a ruidosa companhia da amizade, que dá sentido à vida.
É assim que pelos olhos de Claude vemos Paris sendo apresentada a Christine, a jovem tímida, provinciana e cheia de pudores, órfã recém-saída do convento e recém-chegada a essa cidade que sempre mostra os dentes, como diz Hugo, para rir ou para rosnar. Se os Amigos da Sociedade do ABC se propõem a enfrentar as armas da repressão monárquica, mostrando desprezo a uma vida que não seja republicana, o Bando dos artistas da arte ao ar livre, na febre e folia dos vinte anos, demonstra um firme desdém, desdém do mundo inteiro, entregues à sua paixão artística, livres das enfermidades humanas.
Meu amigo, ficaria horas falando de Paris e da viagem que esse romance está me proporcionando, suprindo, através do prazer estético, a necessidade de estar in loco, andando sem rumo e me embriagando do charme dessa cidade inigualável. Que aos olhos de outras pessoas pareça elitismo ou o que queiram chamar, ça m’est égal! Só sabe o que é Paris, quem viveu Paris.
Ao finalizar, deixo para você, Germano, esta imagem maravilhosa da Île Saint-Louis, pegando Notre-Dame por trás, como navio ancorado à entrada da Vila de Lutécia, na visão de Zola:
“Mais leur trouvaille, ce jour-là, ce fut la pointe occidentale de l’île, cette proue de navire continuellement à l’ancre qui, dans la fuit des deux courants, regarde Paris sans jamais l’atteindre” (L’Oeuvre, Chapitre IV).
“Mas o achado deles (Claude e Christine), nesse dia, foi a ponta ocidental da ilha, essa proa de navio, continuamente ancorado que, na fuga das duas correntes, olha Paris sem jamais atingi-la” (A Obra, Capítulo IV).
Meu abraço, com saudade,
Milton