Aconteceu, mas não foi, claro, no divã de Freud, salvo simbolicamente. Foi no mais modesto divã de minha psicanalista (ou psicoterapeuta), com quem conversei, quinzenalmente, durante uns dez anos. Dez anos que, para algumas coisas, pode ser muito tempo. Mas para falar de si mesmo, escavar a alma em busca do que for, buscar compreender-se para poder compreender a vida como ela é, voltar ao passado mais longínquo, porque lá é que está a explicação de tudo, enfim, para isto e ainda mais, não é tanto tempo assim. Quem já deitou no divã, sabe. Pois bem.
Dizem que a psicanálise (ou a psicoterapia) pretende ser a cura pela palavra. Ou seja, se não houver o verbo, a verbalização das experiências e dos sentimentos, nada feito. Dinheiro e tempo perdidos. Para você, evidente, não para o analista, que está ali para ouvir, mesmo que seja o silêncio, o seu silêncio, que, afinal e a propósito, é um tipo especial de linguagem, talvez a que mais revele sobre quem cala. Mas o fato é que, pelo menos em tese, é inviável erguer-se o edifício psicanalítico (ou psicoterapêutico) sobre alicerces de mudez. Há que haver a palavra. Porque realmente é ela que cura, nela é que reside o remédio daquilo que talvez só o analisando sabe, ou desconfia que.
Pois bem, digo novamente. Nesses meus dez anos de divã é claro que falei muito, apesar de ter dias em que nada me ocorria ao pensamento para falar e então eu pedia que a analista me desse um mote. Um gancho a partir do qual a palavra viesse e fluísse e revelasse. E muitas vezes falei explicitamente só sobre os outros, sobre o que estava fora de mim, sabendo que, mesmo assim, falava de mim, porque, no fundo e no fim, quando falamos sobre qualquer coisa ou pessoa, é de nós que falamos, é a nós que revelamos, pela simples razão de que somos, individualmente, a medida de tudo, o referencial de tudo, o sujeito que faz, a partir de si, tudo existir, e sem o qual nada haveria. Não por coincidência, um dia, Camus disse: “O que desconheço não existe”. A existência do sujeito precedendo o mais. Existencialismo, enfim, fora de moda ou não.
Mas na verdade eu quero falar aqui é do que não falei no divã, a despeito dos citados dez anos. Do que não falei porque não consegui, não porque tenha desejado calar. E não se trata de nada de grandioso nem de especial esse material guardado a sete chaves (desculpe o clichê) na caixa preta da última gaveta do meu íntimo. É algo absolutamente trivial, acreditem, mas que não foi possível trazer à tona para mostrá-lo, para reparti-lo com quem me ouvia. Mistério de confessionário, certamente.
Essa experiência de involuntário silêncio na análise certamente foi vivenciada por outros pacientes. E imagino que tenham todos ficado confusos com essa dificuldade de verbalização, quando, erroneamente, se acha que é tão fácil falar, é só abrir a boca. Por que será essa resistência do que insiste em permanecer oculto? Haverá sempre um resíduo inconfessado em toda análise? Qual o seu significado, a sua explicação?
Perguntará talvez o leitor: Valeu a pena então esses dez anos de divã se você não conseguiu botar para fora tudo que queria? É claro que valeu, respondo com toda certeza. Falar – sem tagarelice – sempre faz bem a quem fala, sem prejuízo, é claro, do valor fundamental do silêncio, língua dos sábios. Não fossem esses dez anos de confissões quinzenais, seria eu muito mais ignorante a meu respeito e a respeito da vida. E quer saber? Hoje em dia aprendi a valorizar aquele resíduo silencioso de que falei antes. Acho que ele acabou se transformando num patrimônio único, algo que é só meu e de mais ninguém, compreende? Tivesse conseguido verbalizá-lo e agora eu não teria nada parecido, estaria mais pobre, que me perdoe o velho Sigmund esta heresia.
Às vezes fico pensando: talvez seja exatamente esse resíduo silencioso que torne possível o processo de análise, ou seja, enquanto houver algo que não foi verbalizado pelo analisando, é viável a continuidade do processo, o qual depende sempre do que ainda não foi dito, e se exaure quando tudo já foi confessado. Mal comparando, é como se a sobrevivência dos confessionários dos padres dependesse sempre da existência de pecadores ou supostos pecadores, isto é, se não mais houver pecado, porque todos já foram confessados, e perdoados, então fechem-se as igrejas, estamos todos já salvos...
Neste caso, justifica-se, penso eu, a apologia do resíduo silencioso, por ser ele o que permite a subsistência da análise como processo contínuo de confissão. Permitindo simultaneamente, em todos os sentidos, a própria subsistência dos analistas. É uma tese, talvez, a ser apresentada, se já não o foi, em algum congresso psicanalítico: a salvação da psicanálise ( e dos psicanalistas) não pela palavra mas pelo silêncio. Heresia?
O que sei é que as palavras (e os silêncios) podem não ter me curado ainda. Mas não será esta a minha vitória? Quem sabe se tudo não está melhor assim? O que você, leitor, acha das pessoas totalmente resolvidas? De minha parte, confesso, acho-as um pouco entediantes, para não dizer, simplesmente, chatas.