Um trem desgovernado rasga a noite, furando barreiras, carregado de soldados que partem para o campo de batalha, na recém-iniciada guerra franco-prussiana. Sem saber que o foguista e o condutor morreram, os soldados cantam, inebriados pela velocidade e pela expectativa da guerra. É este o final de A besta humana (La bête humaine, 1890) de Émile Zola. Um dos finais mais marcantes que conheço para um romance, em que nada se fecha, pelo contrário, se abre para um devir muito preocupante.
A besta humana é dos romances mais tensos e mais crus de Zola, à sua conta podemos computar 4 assassinatos individuais – a menina Louisette, o presidente da companhia de trens, Grandmorin; a esposa do guarda-barreiras Misard, tia Phasie; a esposa do subchefe de estação Roubaud e amante do maquinista Jacques Lantier, Séverine; um assassinato coletivo de 15 pessoas e 32 feridos graves, ocasionado por um desastre calculado do descarrilhamento de um trem, apenas por ciúmes; um suicídio, a jovem guarda-barreira Flore; um maquinista, Jacques Lantier, e um foguista, Pecqueux mortos pelo trem, em luta corporal por causa de uma mulher, Philomène; um condenado sem culpa, Cabuche, e um culpado impune, Misard.
Em meio a esse cenário sangrento, uma justiça de conveniência política. O secretário geral de justiça, M. Camy-Lamotte, queima uma prova decisiva contra Séverine e Roubaud, cuja descoberta poderia respingar no imperador Napoleão IIII, por acreditar, cinicamente, que a justiça e a verdade não passam de ilusões – “Certes, oui, une illusion, la vérité, la justice!” (Capítulo XII). Na sequência, Denizet, o juiz de instrução de Rouen, faz o trabalho e cria uma tese, ligando dois assassinatos, e mesmo diante da verdade confessada pelo verdadeiro culpado, ele insiste na sua tese, acreditando que o culpado mente. Isto resulta na condenação de um inocente. Denizet não abre mão dos argumentos que montara na análise dos dois crimes, para mostrar eficiência e, assim, conquistar sua remoção a Paris. Diante da situação, a resignação de Roubaud, culpado da morte de Grandmorin, mas inocente com relação à morte da mulher Séverine, embora condenado pelos dois crimes – “à quoi bon dire la vérité, puisque c’était le mensonge qui est logique?” (“a que serve dizer a verdade, se a mentira é que era lógica?” – Capítulo XII).
A pedra de toque que faltava ao romance vem com a guerra franco-prussiana, cartada desastrosa de Napoleão III, na tentativa de se manter no poder. É, no entanto, o fiasco da França nessa guerra (de 19 de julho de 1870 a 10 de maio de 1871) que ajuda os franceses a defenestrar seu último imperador e instaurar a Terceira República. Com a guerra, a caracterização da besta humana está completa. Nada mais bestial do que a guerra, cujos objetivos, nunca devidamente definidos com clareza, terminam por fazer uma carnificina entre a juventude, vista apenas como carne para canhão, como diz Zola, enviada à morte sob a bandeira da defesa da pátria. Com a guerra, os serviços de trem sofrem mudanças e agora Jacques Lantier transporta soldados, embarcados como carneiros, nos vagões reservados aos animais (“on embarque les soldats comme des moutons, dans les wagons à bestiaux.”, Capítulo XII).
A magnífica representação da humanidade como besta desgovernada, seguindo em frente em alta velocidade e obstinadamente, para encontrar-se com a sua própria desgraça, é que faz o final de A besta humana um parágrafo de gênio:
“Qu’importaient les victimes que la machine écrasait en chemin! N’allait-elle pas quand même à l’avenir, insoucieuse du sang répandu? Sans conducteur, au milieu des ténèbres, en bête aveugle et sourde qu’on aurait lâchée parmi la mort, elle roulait, elle roulait, chargée de cette chair à canon, de ces soldats, déjà hébétés de fatigue, et ivres, qui chantaient.” (Chapître XII).
“Que importavam as vítimas que a máquina esmagava no caminho! Não ia ela, apesar de tudo, doravante, indiferente ao sangue derramado? Sem condutor, em meio às trevas, como besta cega e surda que se teria soltado entre a morte, ela rolava, ela rolava, carregada desta carne para canhão, destes soldados, já aparvalhados de cansaço e bêbados, que cantavam” (Capítulo XII).
“Que importavam as vítimas que a máquina esmagava no caminho! Não ia ela, apesar de tudo, doravante, indiferente ao sangue derramado? Sem condutor, em meio às trevas, como besta cega e surda que se teria soltado entre a morte, ela rolava, ela rolava, carregada desta carne para canhão, destes soldados, já aparvalhados de cansaço e bêbados, que cantavam” (Capítulo XII).