A poesia de Augusto dos Anjos tem sido objeto de múltiplas avaliações. A riqueza imagística, a erudição inesgotável e a profundidade psicológica, entre outros atributos, fazem com que os críticos a vinculem aos mais variados sistemas e crenças. Há quem veja o poeta como ateu, místico, espírita, filósofo e até, paradoxalmente, como um seguidor do ideário positivista.
Augusto tem um pouco de tudo isso, mas a rigor não é nada disso. Sua poesia estranha resulta de um choque entre a sensibilidade pessoal, potencializada pela intuição, e um intelecto nutrido por diversificadas leituras – grande parte delas vinculada ao cientificismo com que se deparou na Faculdade de Direito do Recife. Ali se ensinava Positivismo, e o contato com essa vertente do pensamento abalou suas crenças metafísicas e concorreu para o dramatismo e o teor agônico de suas imagens.
Era desesperador para o menino criado no engenho e educado segundo os princípios cristãos deparar-se com o evolucionismo de um Haeckel ou de um Spencer, para os quais tudo na natureza evolui segundo leis objetivas e impessoais. Por essa ótica evolutiva, de base essencialmente material, não se cogita de um Além e nada haveria que transcendesse a existência neste mundo. Tal concepção do homem e do universo marcou profundamente o poeta. Segundo R. Magalhães Júnior, “a convivência, com professores e alunos, num centro cultural fervilhante de ideias, causaria poderoso impacto em sua inteligência moça, dando nova feição à sua poesia”.
O contato com o Positivismo acentuou-lhe o desespero metafísico. A percepção de um mundo no qual vida e morte se alternam traduz-se na sua obra em imagens de desconstituição e reconstituição da matéria. “Eu e outras poesias” espelha a dialética entre destruição e recomeço à qual a natureza, o homem e mesmo o cosmo estão inflexivelmente submetidos. Numa outra chave de leitura, e considerando o substrato cristão que dinamiza muitas das imagens presentes em Eu e outras poesias, procurei vincular esse duplo movimento ao mito do “pecado original”, pois uma das obsessões do poeta é substituir o homem decaído, e marcado pela Falta, por um homem novo.
A ideia de que a vida é a morte, e vice-versa, tem uma base natural, biológica, e seduzia os adeptos da Escola de Recife. Articulava-se com outro sistema em voga, o monismo, que permeia a visão de mundo de Augusto dos Anjos. Segundo Alexei Bueno, na introdução à Obra Completa publicada pela Nova Aguilar, o “Monismo evolucionista se transformou nas mãos de Augusto dos Anjos em uma espécie de sistema místico totalizador, que lhe serviu de base tão legítima para o exercício estético quanto sistemas religiosos serviram de base para poetas místicos de todos os tempos”.
O monismo supõe a percepção da unidade dos contrários, visível no expressionismo barroco do poeta. Os exemplos de antítese e de enumeração caótica, que traduzem o amálgama de elementos heterogêneos na Natureza, são abundantes em sua obra. “Perceptíveis no campo dos fenômenos, os contrastes se constituem num dos polos tensionais da poesia de Augusto dos Anjos – entre ‘a saúde das forças subterrâneas’ versus ‘a morbidez dos seres ilusórios’. O mórbido é o ilusório, ou seja, o fenomênico; preserva-se o estatuto de saúde para o potencial, identificado com as forças subterrâneas, com o que pode vir a ser” – conforme já tive oportunidade de escrever. É para melhor traduzir a dinâmica na qual os opostos se alternam rumo ao aprimoramento e à Unidade (à “Coisa em si”) que o poeta se apropria, por exemplo, do conceito de Samsara.
“Samsara” é o termo com que, no budismo, se designa “a série ininterrupta de mutações a que a vida é submetida, espécie de ronda infernal de que o indivíduo só se liberta quando alcança o nirvana”. Segundo Sandra Erickson, “a via crucis de (...) de noite-dia, escuridão-luz e, muitas vezes, clarividência, (vivida pelo leu lírico), não é cultivada por acaso ou pelo apreço por antíteses barrocas (...). No Budismo essa é exatamente a trajetória das formas vivas no mundo samsárico: movimento de escuridão (avydia, ignorância) para luz (iluminação, obtenção do estado nirvânico)”.
Mas o Samsara também pode ser compreendido como “o ciclo de morte e renascimento da consciência de uma mesma pessoa”, o que seria razoável para interpretar a ciclotimia de uma psique como a de Augusto dos Anjos. Considerando essas definições, é possível ver a poesia do paraibano como samsárica num sentido lato, metafórico. A alternância entre destruição e recomeço marca o ritmo da evolução e encoraja a crença no renascimento. O problema é saber até que ponto esse renascer comporta a aceitação de que a alma retorna à vida e habita sucessivos corpos.
As referências à reencarnação, ou à metempsicose, remontam ao orfismo e ao pitagorismo, que tendem a associar misticismo e racionalidade. Essa nobre tradição filosófica dá algum respaldo aos que preferem interpretar os versos do poeta pela ótica reencarnacionista. A verdade, porém, é que uma abordagem literária fundada nessa ideia tem pouco rendimento hermenêutico. Interessa mais aos seus defensores do que, propriamente, aos que buscam entender o fenômeno literário como tal. Um dos poemas em que se costuma relacionar Augusto dos Anjos e reencarnação é “O solilóquio de um visionário”. Seguem os versos:
Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!
A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!
Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...
Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!
A referência a “comer os olhos crus” destaca, metonimicamente, a renúncia ao prazer dos sentidos; ao mesmo tempo, sublinha a inanidade do empenho intelectual para “desvirginar o velho e metafísico mistério”, ou seja, para compreender o mistério da vida e, sobretudo, o da morte. Há quem interprete último terceto como um sinal da crença do poeta em almas de outro mundo que voltam a fim de neste se aperfeiçoar. Por essa ótica o autor se refere mesmo a um corpo que, depois de enterrado, liberta sua alma. Essa é uma leitura que nega o caráter metafórico das imagens e suprime um aspecto importante da poesia de Augusto dos Anjos – o anseio de sublimação.
Tal anseio se expressa claramente no segundo quarteto, em que o eu lírico alude a uma espécie de transubstanciação por meio da qual as impressões visuais e humanas se transformam em visões divinas, etéreas, o que supõe uma abdicação dos sentidos e, consequentemente, do prazer. Não é raro ele qualificar a sua “mágoa” como um desgosto ante a efêmera e pecaminosa natureza humana. Sublimar, segundo Freud, é desviar o instinto sexual para atividades do intelecto e do espírito. Para Augusto, significa libertar-se das prisões carnais. Esse impulso rumo à sublimidade e ao ideal lembra Cruz e Sousa, que também deseja escapar do “cárcere das almas”. A purificação viria por uma ascese, uma espécie de retorno ao éter, e não pelo retorno à vida terrena.
É próprio de Augusto o uso polissêmico de termos vinculados ao universo da ciência, da filosofia e da religião. Por efeito disso, conceitos como o de mônada e de monera perdem a referência original e adquirem novas ressonâncias significativas. O poeta aproveita tudo que sirva de veículo às suas inquietações e, sobretudo, que valorize expressivamente as imagens. É nessa perspectiva que se devem entender as referências a termos como “Samsara”, “Nirvana” e outros que ligam a visão de mundo de Augusto ao pensamento oriental. Tais referências remontam ao ideal helênico da ataraxia, que supõe “a extinção ou o domínio das paixões, desejos e inclinações sensórias”. É possível também perceber nos poemas do paraibano ecos de um budismo colhido indiretamente em Schopenhauer, o filósofo das dores do mundo. Fugir à dor implica renunciar aos instintos e, ao mesmo tempo, viver “na luz dos astros imortais/ Abraçado com todas as estrelas!”, conforme se lê em “O poeta do hediondo”.
Augusto não é ortodoxo em nada (a não ser no seu compromisso com a Arte). Ele emprega a nomenclatura científica e religiosa numa perspectiva metafórica e, com isso, desautoriza as interpretações que tendem a vê-lo como partidário de algum tipo de credo ou sistema filosófico. Isso fica claro quando o poeta se apropria do conceito de Nirvana. Segundo o budismo o Nirvana é um estado, e não um lugar. Corresponde, “à extinção definitiva do sofrimento humano, alcançada por meio da supressão do desejo e da consciência individual”. Não é bem essa a configuração semântica que a palavra tem no final de “Os Doentes”. Nesse longo poema de clima sombrio e apocalíptico, o poeta procede a uma série de recriminações a uma espécie (a nossa) que violou as leis da natureza. O castigo para essa violação é a morte, conforme preceitua a doutrina cristã.
Nos versos finais, que confirmam a dialética entre morte e renovação, percebe-se um aceno de esperança. O poeta se confessa espectador de uma cena auspiciosa: a substituição do homem pecador por outro, não corrompido pela Falta. Escreve ele então: “E eu, com os pés atolados no Nirvana,/ Acompanhava, com um prazer secreto,/ A gestação daquele grande feto/ Que vinha substituir Espécie Humana!” (249).
O desejo de outra humanidade relaciona-se com o mito do Objeto Perdido, que o idealismo alemão incutiu no Romantismo e por extensão no Simbolismo, de que nosso poeta nunca se desvencilhou. Esse mito foi largamente cultivado pelos poetas do final do século XIX. Além do citado Cruz e Sousa pode-se mencionar Augusto de Lima, que escreve nos tercetos da sua “Nostalgia panteísta” (um título que poderia ser de Augusto dos Anjos): “Homem, concha exilada, igual lamento/ Em ti mesmo ouvirás, se ouvido atento/ Aos recessos do espírito volveres. // É de saudade, esse lamento humano,/ De uma vida anterior, pátrio oceano/ Da unidade concêntrica dos seres.”
Mas o que interessa é chamar a atenção, nos versos finais de “Os Doentes”, para a referência a esses “pés atolados no Nirvana”. Trata-se de uma imagem curiosa, em que o Nirvana aparece não como um estado, mas como um lócus. Um lugar onde o eu lírico “atola os pés”. Certamente nenhum budista concordaria com essa formulação grosseira para designar a Iluminação, um estado graças ao qual a alma se liberta dos grilhões do desejo; assim como nenhum monista da época concordaria com alguém que visse Deus como “uma mônada esquisita”; nenhum adepto de Haeckel aceitaria ver a monera como uma “mãe antiga”; e, para finalizar, nenhum cristão concordaria com a assertiva de que “há mais filosofia (num) escarro/ Do que em toda a moral do cristianismo”, conforme o poeta escreve em “As cismas do Destino”. Enfim, a ideia de algo em que os pés “se atolam” é mais uma imagem de entrave, impotência, do que de libertação.
A reencarnação supõe que a alma se circunscreve ao plano individual. Tal suposição não se ajusta à visão de mundo de Augusto dos Anjos, para quem o “eu” é na verdade um “nós”. O que deve se purificar não é o indivíduo ao longo de diversas vidas, e sim toda a Humanidade. Por esse impulso salvacionista, o poeta se aparenta a um redentor. Com efeito, “a exacerbação do senso ético, a fusão ilimitada com as dores do homem e do mundo, o desejo de redimir a natureza condenada pelo ‘vício’ – tudo faz pensar no eu lírico como um novo Cristo, um terceiro Adão”.
Não vejo, enfim, como conciliar a ânsia de purificação e aperfeiçoamento coletivo com a ideia de reencarnação ou metempsicose. Defender essa verdade é reduzir a amplitude e o valor das imagens poéticas, e sobretudo desconhecer que para Augusto o espaço da metafísica é o espaço da Arte. Ele afirma isso, programaticamente, em versos antológicos de “Monólogo de uma Sombra”: “Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,/ Abranda as rochas rígidas, torna água/ Todo o fogo telúrico profundo/ E reduz, sem que, entanto, a desintegre,/ À condição de uma planície alegre,/ A aspereza orográfica do mundo!”.