Em verdade, os tons de harmonia e tranquilidade da paisagem apolínea cultivada desde a Grécia clássica, atualizados hoje, no cinema, seduzem pela sua promessa de felicidade, num paraíso celestial, a salvo dos conflitos e violências. A máscara de Apolo (deus da razão e da beleza) conquista pela sua aparência de perfeição e integridade: o apolíneo, em sua platônica frieza e distanciamento, atrai estranhamente pela sua aparência sublime e majestosa.
Esta orientação estética dos afetos pelas formas sublimes e apaziguadas do alto celestial inspira-se no panteão das divindades superiores do Olimpo. É reconfortante, mas coloca o humano sob um permanente estado de submissão e vigilância.
Dionísio, entretanto, é uma divindade estrangeira, popular, um corpo estranho na civilização grega. Está ligado ao baixo, à dimensão terrena, popular, comunitária e agrícola. Emana uma filosofia da vida em que corpo e mente estão juntos, na experiência do aprendizado. É disso que fala Nietzsche, em A Gaia Ciência, uma exortação à alegria de viver a vida cotidiana, reconhecendo e superando o trágico da existência.
A canção popular diz com razão que "Narciso acha feio o que não é espelho": no culto de Apolo acontece basicamente a mesma coisa, pois o apolíneo, como o platônico, emana uma aura de elevação para o sublime, ou seja, consiste sempre numa forma de idealização conformista, à espera de um amanhã que canta. Narrativas apolíneas reforçam tendências à conformação diante das imagens em sua forma definitiva.
Em suma, o apolíneo favorece uma atitude passiva diante da vida. Então, a presença de Dionísio (Baco) se faz necessária para liberar a coragem, o entusiasmo e o fogo da transformação.
O apolíneo inspira uma consciência estética e social que sempre teve o seu lugar nas representações humanas. Desde as expressões musicais, artes cênicas e literatura, passando pela pintura e fotografia, chega hipertrofiado no cinema, artes do vídeo, hipermídia, e goza de imenso prestígio junto às massas.
O apolíneo tem uma função bem específica no culto da beleza e do amor idealizado, em sua verdade egóica, tanto no mundo antigo quanto contemporâneo. É envolvente e fascina pelo seu aspecto de plenitude. Há que se reconheça a dimensão de ordenação e clareza que irradia, aquecendo o espírito dos apaixonados, românticos e sonhadores. O problema é que Apolo atende a um apelo de ordem fortemente narcísica e excludente, seu gênio extremamente contido, hermético e racional, em última instância, desconhece e recusa o outro, que lhe parece estranho e ameaçador. Portanto, o apolíneo favorece as experiências cruéis da discriminação, exclusão e segregação. Em termos estéticos, o apolíneo está mais próximo de uma "teoria do belo", e o dionisíaco, próximo de uma "teoria do sensível".
À luz de uma "psicologia das profundezas", Jung nos permite enxergar como a introversão apolínea e a extroversão dionisíaca são instâncias psicológicas, estéticas e existenciais que implicam em posturas, respectivamente, sublimadas e ativas diante da vida. E parece que todo o esforço humano, nas artes da criação, consistiria em dominar a fusão dessas duas tendências em oposição. Como não existe arte sem tensões e conflitos, encontramos essa coincidência dos opostos, na tela do cinema, que exprime frequentemente modos de "sincronicidade" entre os afetos contrários (Jung, 1977).
Do livro "Epifania das Imagens - Apolo e Dionisio no Cinema", disponível na Amazon