Tenho falado de uma visão sistêmica do fato literário, o que, em si, não é nada de novo. É quase impossível falar isoladamente de um texto, de um autor ou de um gênero. Aristóteles tinha conhecimento dessa impossibilidade, quando para falar da tragédia teve que compará-la à comédia e, sobretudo, à épica, montando uma tipologia do gênero, a partir de leituras de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, sem esquecer, evidentemente, Homero.
A compreensão desse sistema não existe sem que os autores tenham consciência e reflitam sobre o fato literário, mesmo que alguns candidatos a escritor achem que podem escrever sem ler. A escritura pressupõe uma leitura da tradição e da contemporaneidade. O escritor é, antes de tudo, um leitor.
O poeta Marcial não teria transformado o epigrama em gênero literário se ele não tivesse se incluído nesse sistema, lendo e adotando Catulo como seu mestre. De mesmo modo, seria difícil pensar no epigrama catuliano e no seu dístico elegíaco, que fará dele um dos novos poetas, sem que o veronês recorresse ao poeta grego Calímaco. É esse diálogo que alimenta o sistema, que faz a literatura ser uma arte cuja leitura é sempre renovada e realimentada, a depender do horizonte de expectativa do leitor. Quanto maior experiência do leitor com a leitura literária e com a cultura, maior a chance de sair das limitações da significação e chegar à significância, um sentido maior, mais amplo e ilimitado do texto, que atesta a existência do sistema.
O poeta latino Ovídio (43 a.C. — 17 d.C.), quando da publicação do Livro dos Amores (3 livros), dá uma demonstração de sua consciência como escritor, fazendo um diálogo implícito com os epigramas de Calímaco e de Catulo. Utilizando a ironia que permeia essa forma, Ovídio apresenta na abertura do Livro I dos Amores um epigrama que se intitula “do próprio livro” e destila a ironia sobre quem, à pressa de publicar, não reflete sobre a obra que escreveu. Vejamos o epigrama, no original e em tradução nossa:
Epigramma Ipsius
Quī mŏdŏ Nāsōnīs fŭĕrāmūs quīnquĕ lĕbēllī, trēs sŭmŭs; hōc īllī prǣtŭlĭt aūctŏr ŏpŭs. Ūt iām nūllă tĭbī nōs sīt lēgīssĕ uŏlūptās, āt lĕuĭōr dēmptīs poēnă dŭōbŭs ĕrĭt.
Quī mŏdŏ Nāsōnīs fŭĕrāmūs quīnquĕ lĕbēllī, trēs sŭmŭs; hōc īllī prǣtŭlĭt aūctŏr ŏpŭs. Ūt iām nūllă tĭbī nōs sīt lēgīssĕ uŏlūptās, āt lĕuĭōr dēmptīs poēnă dŭōbŭs ĕrĭt.
Epigrama do Próprio Livro
Nós, que há pouco fôramos cinco livrinhos de Nasão, somos três; o autor preferiu esta obra àquela. Supondo que já não tenhas nenhum prazer por nos ter lido, mais leve, porém, será a pena tendo sido retirados dois.
Nós, que há pouco fôramos cinco livrinhos de Nasão, somos três; o autor preferiu esta obra àquela. Supondo que já não tenhas nenhum prazer por nos ter lido, mais leve, porém, será a pena tendo sido retirados dois.
Ao fazer o epigrama, Ovídio faz a volta à tradição de Catulo e de Calímaco. Não retorna apenas na forma — poema curto e talhado no dístico elegíaco —, mas também na essência, com o uso da ironia. Poeta de obra extensa, Ovídio usou o hexâmetro apenas nas Metamorfoses, nos demais livros o verso utilizado foi o dístico elegíaco, constituído de dois metros diferentes, um hexâmetro, nos versos ímpares, e um pentâmetro, nos versos pares, conforme podemos ver na métrica acima. Esse retorno à tradição é ainda mais evidente, quando sabemos que, apesar da extensão de sua obra, nela não se encontra nenhum livro de epigramas.
Na abertura do livro de contos Várias histórias, Machado de Assis, como de costume, escreve uma pequena “Advertência” ao leitor, em que traz uma epígrafe de Diderot, em francês, e, no corpo do texto, faz referências a Mérimée e Poe (Prosper Mérimée, autor francês, dentre outros livros, da novela Carmen, que deu origem à ópera de Bizet; e Edgar Alan Poe, que dispensa apresentações). Essas referências mostram a cultura de Machado que, diga-se de passagem, ele deixa entrever nos seus livros, como, por exemplo, a influência do Otelo de Shakespeare em D. Casmurro. Ao mesmo tempo, elas revelam como Machado, consciente de sua criação, fazia questão de inserir-se no sistema, exigindo do leitor mais do que uma compreensão horizontal do que ele escrevia.
Há ainda algo mais importante na “Advertência” de Machado. Ao final, após referir-se à sua coletânea como “um modo de passar o tempo”, contos que “não pretendem sobreviver como os do filósofo” (Diderot), também não sendo obras-primas como os de Mérimée ou não tendo a primazia na América como os de Poe, Machado faz uma citação interessante, que reproduzo em seguida:
“O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres, é serem curtos”.
Ora, o leitor, que conhece o epigrama de Ovídio, faz a imediata ligação entre Machado de Assis e o poeta latino. Isto é o horizonte de expectativa pondo a funcionar o sistema literário. O texto de Machado, agora, vai além de Diderot, Mérimée e Poe por ele citados e inclui na sua rede comunicante Ovídio e toda uma tradição epigramático-irônica.
Haverá quem pergunte se Machado leu Ovídio e, especificamente, o epigrama de abertura do Livro I dos Amores. Não posso dizer que sim, nem que não. Apenas digo que não é necessário que a leitura tenha sido feita. O sistema funciona até quando o leitor desconhece essa ligação entre os textos, pois ela se mantém latente. Se o leitor a conhece, está na previsibilidade do sistema; se não a conhece, não o invalida, pois, ele aparecerá, uma hora ou outra, e o fará passar da significação para a significância, tornando maior a fruição de sua leitura. É só abrir o seu horizonte de expectativa.