Tomé era um homem preguiçoso. Ninguém sabe o porquê, mas já faz uns anos que bateu uma imensa preguiça nesse cidadão. Preguiça daquelas, b...

Um corpo rio abaixo

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Tomé era um homem preguiçoso. Ninguém sabe o porquê, mas já faz uns anos que bateu uma imensa preguiça nesse cidadão. Preguiça daquelas, bravas. De fazer inveja àquele bicho de unhas compridas que carrega no nome o estigma da inércia, da lombeira, do marasmo, da sornice e não sei mais lá quantos desses adjetivos. Sabem de qual bicho estou falando, não sabem? Pois é ele mesmo. Tanto foi que nosso amigo passou a ser chamado de Tomé Sossego ou Doutor Sossego, já que era delegado de polícia na cidadezinha que aqui chamaremos simplesmente de P.

É bom que saibam, P era bucólica, bem organizada, com uma agência dos Correios, outra do Banco do Brasil, uma UPA e tudo que era necessário para elevar o IDH daquelas quase cinco mil almas que habitavam o município. Tão aprazível era a localidade que trabalho mesmo, Doutor Sossego não tinha. Em sua delegacia a única cela existente vivia às moscas. Essa nossa autoridade, mais um cabo e dois praças gastavam as horas jogando truco, vendo revistas de mulher pelada. Ocorrências? Uma galinha que desaparecia de um quintal e podia surgir ao molho pardo em alguma panela, mais que isso ali nada acontecia por lá. Cronos, vez ou outra, buscava dali algum vivente com a certidão de nascimento vencida para o escolhido colocar os assuntos em dia com Deus. Um velório hoje, outro dois anos mais para frente. Além disso, quase nada. Lá em P até o tempo parecia ter preguiça..

Voltando à autoridade em questão...

Sol baixando, Doutor Tomé e o soldado Jurandir costumavam dar uma função à viatura oficial e embarcavam nela até o rio J que passava a três quilômetros dali. Rio caudaloso, de corredeira brava, havia engolido gente tempos passados. O povo tinha respeito por aquelas águas, ninguém ousava nadar ali, só pescar como gostava de fazer Doutor Sossego nas tardinhas ensolaradas.

O povo, à boca pequena, comentava a folga daquele funcionário do governo.

- Emprego desse, quem não ia querer? – questionava um.

- Esse não vai se aposentar, já está - reclamava outro

A uns treze quilômetros dali, rio abaixo, outra cidadezinha, bem parecida: H, com um pouquinho mais de gente, uns seis mil se tanto e um delegado, este sim, o Doutor Almeida, bravo e valente. Cioso das obrigações, sua delegacia era um brinco. Como as ocorrências eram poucas, nosso delegado vivia levando gente ao médico, arrecadando fundos para distribuir cesta básica; enfim, exercendo com plenitude sua cidadania.

Não gostava de Tomé. Haviam sido contemporâneos de faculdade e o preguiçoso, que à época nem era tanto, dizem, andou dando uns pegas naquela que um dia viria a ser a senhora Almeida. Daí o enguiço. E mágoa por esses motivos são para sempre. Almeida, que também era muito religioso, vira e mexe, desancava impropérios no lombo do colega rio acima

- Aquilo é um traste, devia ser exonerado. Preguiça é pecado. É bom que aquele vagabundo saiba disso.

Doutor Tomé ficava sabendo das ofensas, mas sacudia os ombros com descaso e rebatia.

- Inveja também é pecado, será que ele não sabe?

Mas um dia, não é que aparece bem perto de onde o Doutor Sossego pescava, enroscado nuns aguapés, um corpo boiando? A notícia correu ligeiro. Não deu nem uma hora do momento que o alarme foi dado e estava assim de gente à margem do J, para ver o defunto. O povo estava até curioso em saber de quem seria aquela carcaça em decúbito dorsal, mas queriam mesmo era ver Doutor Tomé trabalhar.

- Hoje aquele safado trabalha.

- Finalmente um serviço pro folgado.

- Ufa, uma ocorrência. Hoje aquela criatura vai pro batente.

Quase escurecendo, chega ele e seu eterno escudeiro, o soldado Jurandir. Cigarro no canto da boca, chapéu meio de banda, nó da gravata já frouxo, Doutor Tomé, com ares de quem estava muito compenetrado deu uma olhada cuidadosa e perguntou.

- Alguém sabe de quem é esse corpo? – ninguém sabia - então vou ter que resolver essa situação – disse nosso delegado.

A pequena multidão, se mostrou surpresa, mas ficou firme querendo saber como Doutor Sossego iria finalmente desvendar algum mistério, resolver um caso.

- Jurandir, vai ali, me corta um bambu e traz aqui,

Jurandir foi, cortou uma vara de uns três metros e trouxe para o Doutor Tomé. Com ela, o delegado desvencilhou o corpo da vegetação e este ligeiro ganhou a correnteza que foi levando o cadáver rio abaixo. Em seguida limpou as mãos, acendeu um cigarro e comentou:

- Estou mandando um serviço pro Almeida. Não é ele que gosta de trabalhar?

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