O texto que apresento a seguir, sobre o soneto “Último Credo”, de Augusto dos Anjos, é fruto do diálogo sistemático que tenho em sala de aula, procurando estabelecer um caminho metodológico de leitura analítica e crítica.
Certamente, alguns devem estar incomodados com o título atribuído a este ensaio – “A equação da espiritualidade”. O incômodo é proveniente de se ver, habitualmente, Augusto dos Anjos como o poeta da morte, sentido que ganhou uma dimensão inercial, de tanto repetido. Digamos que, de um modo didático, podemos caracterizar a sua poesia da seguinte maneira: os poemas constituem um sistema de vasos comunicantes, devendo ser lidos em conjunto, cuja linguagem científica revela a utilização da degradação da matéria como um evangelho a impelir para uma aprendizagem sobre a vida e não sobre a morte; a morte, por sua vez, é vista como uma passagem incontornável a todos os seres vivos – “a alfândega, onde toda a vida orgânica/há de pagar um dia o último imposto!” (“Os Doentes”, estrofe 30) –, além de necessária à evolução espiritual. Essa travessia incontornável não se faz sem uma angústia, a angústia da evolução: avançamos na evolução natural da espécie, mas ficamos para trás na evolução do espírito.
Sendo a espiritualidade um traço marcante na poesia de Augusto dos Anjos, ela age numa perfeita relação dialética com a materialidade. O espírito precisa da matéria para evoluir e cada laço que o homem solta da dependência da materialidade, mais ele caminha para a sua origem cósmica, entendendo-se o termo com o sentido grego de ordenação – κόσμος.
De nada adianta ao homem fugir à materialidade, daí a recriminação ao Filósofo Moderno, em “Monólogo de uma Sombra”, “esse doido das origens”, que igual a “um faquir, pelos cenóbios”, “esse doudo/estragou o vibrátil plasma todo”. Fugir à materialidade não o impedirá de “reduzir-se/à herança miserável de micróbios!” (estrofe 15). A convivência com a materialidade não evitará, igualmente, a degradação de nosso corpo e a nossa morte gradual, mas ao menos o contato permanente com a degradação moral poderá nos servir de lição e, a partir dela, deveremos aprender a exercer o desapego ao corpo material, sobretudo o desapego com relação ao mau uso da vida material, em sua forma de vícios e desregramentos, como o adultério e o alcoolismo, que abrem o poema “Último Credo”:
Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro – este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um,
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!
Continuando no nosso propósito didático, podemos dividir o poema em três partes: Os vícios da materialidade (primeiro quarteto), O mistério da existência (segundo quarteto) e Crença (tercetos finais).
Em “Monólogo de uma Sombra”, a Sombra fala de “uma vocação para a Desgraça/E um tropismo ancestral para o infortúnio”, existentes na “alma crepuscular de minha raça” (estrofe 6). Tendo o conhecimento de toda a sua trajetória, da monera ao Filósofo Moderno e ao Sátiro Peralta, a Sombra tem a consciência do quanto foi desperdiçado pelo homem, seu semelhante, em dissipação da energia da matéria, sem um grande empenho fora dessa voracidade material, seja entregando-se a um raciocínio puramente materialista ou aos desregramentos do sexo. Se há algo que impeliu o homem para a desgraça e para o infortúnio foram as suas escolhas e não um determinismo.
Esta percepção que encontramos em “Monólogo de uma Sombra” é a ponte para o soneto “Último Credo”. O homem se entrega aos prazeres dos vícios, aqui representados, com forte simbologia, pelo sexo adúltero e pelo álcool, sem pensar um segundo sequer na morte ou quando nela pensa a vê como inimiga. Obviamente que choca a quem lê a primeira estrofe do poema, o amor devotado ao coveiro. E, possivelmente, se entende de modo errado o coveiro ser chamado de “ladrão comum”, atribuindo-se ao adjetivo “comum” o sentido de “reles”. Na realidade, a morte é uma espécie de tropismo: dirigimo-nos inevitavelmente para ela, mesmo que pretendamos, a todo custo, evitá-la. O coveiro é, pois, uma complexa metáfora de ladrão, associada a uma metonímia da morte, a que ninguém escapa. Todo o ser vivo tem algo em comum: um dia será arrastado para o cemitério, real ou metafórico, pela morte-coveiro, que parece nos roubar da vida. Apenas parece, mas não rouba, pois a morte nos acompanha. O choque proveniente da afirmação de amor ao coveiro é que dá essa aparência de roubo. O eu-poético ama o coveiro/morte por ser a morte incontornável, inevitável, comum e, sobretudo, libertação da matéria. Quem pode se libertar do vício, com a facilidade com que o espírito se liberta com a morte? Ruinoso não é amar a morte, mas viver preso ao vício, qualquer que seja ele, de sexo ou de álcool. A morte só degrada o corpo, enquanto os vícios degradam muito mais: corpo e espírito. É aqui também que se desenha a antítese entre vida e morte, um dos eixos do poema. Não há qualquer dúvida de que, para o senso comum, o prazer do sexo e da bebida, ainda que desregrado, se contraponha à ideia de morte.
Na segunda parte – Os mistérios da existência – a morte é o mistério que transcende o humano e o indivíduo. O superlativo, característico da poesia de Augusto dos Anjos, dá uma ênfase especial ao que se quer dizer. A morte se torna o “transcendentalíssimo mistério”, para todo aquele que acredita nela como o fim de tudo, não apenas o fim da matéria orgânica. Se o corpo orgânico desaparece, transformando-se, aos nossos olhos, em matéria degradada, o que é do espírito permanece – o nous, o pneuma, o ego sum qui sum. Os termos nous e pneuma vêm do grego, sendo este o sopro, a respiração e, portanto, a vida (πνεῦμα), e aquele a inteligência, o espírito, a sabedoria, o pensamento, importante para dar um direcionamento à vida (νοῦς). Ambos se unem ao ego sum qui sum, como parte essencialmente espiritual. Sabemos que esta foi a resposta dada por Deus a Moisés, quando perguntado quem é (Êxodos, 3, 14). A morte atinge a todos, incluindo-se Cristo, o filho de Deus, que morreu para trazer a vida – “eu vim para que tenham vida e a tenham mais abundantemente” (João 10, 10) –, vida sem as amarras da materialidade e de seus vícios.
Mesmo Tibério, imperador romano, dono do mundo, à época de Cristo, não escapa à morte. O “fatídico número 1”, alcança ambos, Cristo e Tibério, que morrem no século I de nossa era, Cristo, no ano 33; Tibério, em 37. É esse alcance do “coveiro, ladrão comum” que realça a antítese da primeira parte do soneto, encaminhando o leitor para a compreensão de Tibério e Cristo como símbolos. Este o vitorioso homem universal, aquele o vencido homem particular. Por extensão, vemos que a vitória do poder espiritual sobre o poder material prepara a terceira parte do poema, num encadeamento estrutural perfeito.
Na terceira parte do soneto – Crença –, constata-se a profissão de fé do eu-poético, cuja crença na evolução espiritual é inequívoca. Os dois tercetos encontram-se ligados por uma estrutura anafórica – “Creio..., Creio...,”, a reiterar a necessidade da evolução, duas vezes evocada (versos 11 e 12). A substância cósmica evolui à medida que a generalidade decresce. É aqui que constatamos a equação da espiritualidade: quanto mais nos desligamos da materialidade, mais crescemos espiritualmente, mais nos aproximamos da substância cósmica e maior cresce a esperança em uma nova espécie, como podemos ver em diversos poemas de Augusto dos Anjos (“Agonia de um Filósofo”, “Sonho de um Monista”, “Louvor à Unidade”, “Suprême Convulsion”, “Revelação” etc...) e cujos versos mais emblemáticos se encontram nas estrofes que constituem a nona e última parte de “Os Doentes”, de que destacaremos apenas os versos 435-438:
“E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!
Esta crença última, como último bastião, determinará a vitória do homem universal sobre o particular. Tibério determina a morte de Cristo, mas é Cristo quem vence Tibério. Ambos morrem, mas a universalidade do Cristo predominará sobre a individualidade encerrada do imperador.
A “evolução imensa” de que o eu-poético fala no verso 12 é ambivalente. Apesar de toda a evolução biológica, o homem não evoluiu espiritualmente. A angústia da evolução caracteriza-se pela dissincronia entre a evolução material e a evolução espiritual. A “generalidade decrescente”, que, dialeticamente, resulta na evolução da “substância cósmica”, desaparecerá para dar lugar à universalidade do espírito. A matéria, que é particular, será vencida pelo espírito, que é universal. O Filósofo Moderno criticado pela Sombra, por estar preso a uma racionalidade estéril, não aprendeu com o maior dos filósofos, Platão, que a alma é imortal e o que garante a sua imortalidade é a sua mobilidade, destinando-a a voltar em outros corpos. A libertação gradual da matéria, necessária apenas como um instrumento para a nossa evolução, é a lição de que devemos usá-la como um meio, um instrumento, não como uma finalidade. A finalidade é o encontro com a substância cósmica, o uno, a “substância de todas as substâncias”, a que se refere a Sombra.
Ressaltemos, finalizando a nossa leitura, que, quando lemos o texto considerando a sua estrutura, vemos que é falso se falar de morbidez do eu-poético – que alguns confundem com o próprio Augusto dos Anjos. O que parece mórbido é apenas a preparação do leitor para a profissão de fé, que virá em seguida. Diante de tantos credos a que o homem pode se agarrar – dos vícios aos mistérios – o último credo, fundamentado na evolução cósmica, é o que permanece.